Entendo que somos fruto da realidade social em que vivemos, como dizia o velho Marx. As nossas relações na família, igreja, comunidade, escola, vão par e passo formando nossa consciência. Destaco alguns fatos da minha história que marcaram e orientaram minha participação política e meu interesse de pesquisa, Projeto Histórico Socialista e a Escola no MST: Possibilidade-Realidade frente ao Projeto Histórico Capitalista.
Como filho de funcionários públicos federais, tive um padrão social que me permitiu estudar todo o ensino fundamental numa escola Marista, de João Pessoa – PB. Época, ainda, da ditadura militar, início da “redemocratização”. Muitos fatos marcaram aquele tempo, principalmente aos relacionados com os ensinamentos da Igreja Católica e o convívio com os colegas de turma, oriundos da classe burguesa. Lembro com perfeição que muitos discentes, ainda imberbes, aprendiam com seus pais os procedimentos da bolsa de valores e a crítica aos ideais comunistas. Esses debates afloravam, vez por outra, nas aulas de história e OSPB, que tínhamos como privilégio estudar pelo livro do Frei Betto. Porém esses embates teóricos eram raros, já que a maioria dos professores se preocupavam com a transmissão de conteúdos da disciplina numa concepção de história centrada nas datas comemorativas, em que a avaliação privilegiava a realização de provas objetivas.
Ao ingressar na ETFPB, hoje CEFET nada seria como antes. A Escola (como chamávamos a ETFPB), lá encontrávamos desde o garoto pobre do interior, que morava na residência secundarista, passando por aqueles de bairros periféricos que estudaram em escola pública, até os filhos de empresários da construção civil. Apesar do ensino técnico ser caracterizado como tradicional, tínhamos professores com uma visão diferenciada da realidade social, um deles me chamou a atenção. Professor José Marques (o Preguinho), militante partidário, que se fazia presente em atos em defesa do ensino público, especialmente na campanha eleitoral de 1989. Uma outra realidade começava a se construir em minha cabeça. Nessa Escola o debate político era efervescente, vestido numa roupagem das diferentes manifestações culturais, artísticas e desportivas, inseridas numa amálgama de classes sociais heterogêneas, a partir das lutas do sindicato e do grêmio estudantil. Aquele bom menino da classe média queria agora mudar o mundo!
Mas, um fato marcante daria rumo a essa história. No final de 1990, o professor Zé Marques ao retornar de uma viagem à Juru (PB) a fim de participar de uma manifestação política de professores, teve sua vida ceifada por um acidente automobilístico. O enterro de ‘Preguinho’ foi algo que me marcou profundamente, uma longa marcha invadiu o centro da capital paraibana ao som de Vandré e não saia da minha mente o sentimento altruísta de tantos lutadores do povo, que deram a vida em nome da causa. Assim foi que aos 16 anos, realizei minha filiação no Partido Comunista do Brasil – PCdoB, e ingressei no Movimento Estudantil, desencando a participação como candidato a Diretor na chapa que disputava o Grêmio da ETFPB. A opção pelo PCdoB me fez conhecer também a União da Juventude Socialista (UJS), e o engajamento no Movimento Cara-Pintada (Fora Collor), atividades secundaristas e a participação em ocupações de terra promovidas pelo partido na área urbana de João Pessoa - PB. Infelizmente era um momento na história difícil para os comunistas, em 1989 havia caído o Muro de Berlim e em seguida o esfacelamento da União Soviética, um debate intenso tomava corpo sobre a situação política e os caminhos para continuar a luta pela implantação do comunismo. Assim, enquanto os camaradas paraibanos tentavam explicar o que estava acontecendo, só me interessava em militar e transformar o mundo, sem compreender ao certo o que se passava ao meu redor. O momento histórico ditava suas cartas, muitos militantes do partido deixavam as fileiras de luta, ou ingressam em outros partidos, como o Partido dos Trabalhadores – PT, que ganhava força com a candidatura de Lula à presidência.
Aos 17 anos e dentro desse “caldeirão”, tive que fazer a dura escolha do vestibular. Pressionado, de certa forma, por meus pais realizei, a contra gosto, o vestibular para Engenharia Mecânica na UFPB, no qual fui aprovado. Tempos difíceis aqueles, pois o curso na área de exatas me retirou dos debates políticos e me enjaulou nas frias disciplinas de cálculo, de máquinas e motores. Após dois anos, cursando as disciplinas sem êxito, resolvi prestar outro vestibular, agora para Educação Física, abandonando o curso de Engenharia.
Finalmente, com a aprovação, havia me reencontrado. De volta ao movimento estudantil assumi o cargo de Diretor de Esportes do DCE da UFPB em 1994. Percebendo, a partir do movimento universitário, as contradições da luta, principalmente quando o assunto era Carteira de Estudante, a organização estudantil se afastava da base e não tinha de forma clara o atendimento aos anseios da maioria dos estudantes, sendo realizado apenas um Congresso de Entidades de Base.
Apesar de todas as contradições comecei a articular o pensamento teórico da educação física com o movimento estudantil. A pedagogia crítico-superadora era o foco central dos estudos da Educação Física, representando uma pedagogia emergente que visava responder aos anseios da classe proletária .
Durante a graduação atuei em atividades de extensão e pesquisa, favorecendo uma gama de experiências, principalmente no seio popular, do qual destaca-se o Projeto “Associar” da ETFPB, que oferecia atividades lúdicas para a Comunidade de “Paulo Afonso”, do bairro de Jaguaribe, tendo também a oportunidade de conhecer, um acampamento do Movimento Sem Terra (MST), experiência que marcou profundamente minha visão de como ver e compreender o mundo. Pude, finalmente, afirmar minha concepção ideológica em favor da classe trabalhadora e assim colocar o conhecimento da pedagogia crítico-superadora a serviço da educação popular, firmando uma troca de experiência com os movimentos sociais, possibilitando reflexão acerca da conjuntura capitalista.
Ingressei em 1998 no curso de especialização em Administração da Educação da UFPB, vivenciando, durante dois anos, as idéias e realidades das professoras/alunas do interior do estado, oriundas de municípios como Patos, Soledade, Cuité, Piancó, Sapé. Este último município me forneceu a primeira experiência escolar, como professor concursado do ensino fundamental. Até então Sapé representava para mim os olhos vivos de João Pedro Teixeira logo após ser covardemente assassinado. Durante o trabalho pude comprovar, in loco, os desvios de verbas do FUNDEF e o descaso dos governantes, a situação precária do ensino público. Com Jorge, um funcionário da Prefeitura, iniciou-se a criação do Sindicato dos Servidores de Sapé, que ao som de muitas retaliações se conseguia organizar professores e alunos, realizando assembléias e passeatas a fim de analisar o FUNDEF. Verificadas as irregularidades formulou-se denúncias junto à imprensa e aos órgãos competentes, chegando a ponto de sofrer ameaça de ´capangas´, como forma de intimidação. O fruto dessa pedagogia revolucionária popular foi a cassação e prisão do Prefeito, tendo os dados coletados se transformado na monografia da especialização.
Em seguida fui aprovado como professor substituto na Universidade Regional do Cariri (URCA), no município de Crato-CE, obtendo a primeira experiência no magistério superior. Na conurbação Crato-Juazeiro-Barbalha, conheci de perto as histórias do Beato José Lourenço, o Antônio Conselheiro da região. Apesar das dificuldades impostas pela Universidade, tradicional e recheada dos ideais coronelistas da região, realizamos um trabalho multidisciplinar no Caldeirão (Assentamento "10 de Abril") do MST, envolvendo professores e estudantes principalmente vinculados ao Departamento de Saúde e Ciências Biológicas, embora não tivéssemos o interesse e o apoio necessário das Pró-reitorias, principalmente a Pró-Reitoria de Extensão. Naquele momento, não consegui aprofundar a prática realizada pelo Movimento Sem Terra, nem compreender com profundidade os ideais do Movimento, apenas aprofundei minha percepção a respeito das contradições do sistema capitalista, buscando as possibilidades de resistência. O tempo urgia, a passagem no Ceará seria efêmera, pois havia me inscrito no concurso para a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, onde acabei sendo aprovado para a disciplina de Estágio Supervisionado Escolar.
Em Jequié (BA), cidade com 50,8% da população indigente, ficaria mais próximo de Taffarel e Michelli Escobar, que agora estavam na UFBA/Salvador e coordenavam a Linha de Estudos e Pesquisas em Educação Física, Esporte e Lazer (LEPEL), vinculada ao CNPq. As disciplinas que ministrei e a relação com a LEPEL me fizeram aproximar da escola pública e dos movimentos sociais, através de ações pedagógicas em escolas de periferia e nos assentamentos e acampamentos do MST de Vitória da Conquista, Ipiaú e Wesceslau Guimarães, já que Jequié não possuía acampamentos ou assentamentos do MST. Iniciamos, também, um Projeto de Extensão Universitária sobre futebol, através do engajamento da Associação de Moradores do bairro do Mandacaru (por coincidência o mesmo nome do bairro da infância), acreditando na organização popular e tendo a universidade como fomentador do processo fortalecimento dos movimentos sociais. Passamos a atuar, também, num Projeto de Pesquisa voltado para a escola do MST, a partir da realidade do Sudoeste Baiano, juntamente com professores e alunos de diversos cursos da UESB e com o vínculo direto com a LEPEL. A idéia central era perceber a contribuição da força da rapadura com farinha, oriunda das camadas populares, e suas possibilidades frente ao Projeto Histórico Capitalista.
Nesse caminhar da história, senti a necessidade do aprofundamento teórico para o enfrentamento de novas lutas nos movimentos sociais, o que me encorajou a realizar a seleção do mestrado em Educação Popular da UFPB com o intuito de fortalecimento da luta cotidiana em prol da educação popular, a serviço dos movimentos sociais, a partir de uma formação mais específica nessa área de conhecimento. Com a entrada no mestrado passei a conciliar a UESB, em Jequié/BA, com as aulas em João Pessoa/PB. Na UESB, passei a coordenar o Projeto de Pesquisa intitulado “Formação omnilateral e os desafios da Escola do MST em seus acampamentos e assentamentos no sudoeste do Estado da Bahia”, que atuava no assentamento da Amaralina em Vitória da Conquista/BA e no acampamento Mariguela em Ipiaú/BA. Tal projeto tinha como objetivos conhecer e compreender a proposta educacional implementada pelo MST e sua relação com o Projeto Histórico Socialista, verificando como e onde se formam os educadores(as) das Escolas do MST, a fim de identificar quais são os principais limites e contradições encontradas pela Escola do MST.
A experiência em Vitória da Conquista, Ipiaú e na LEPEL me rendeu uma série de conhecimentos adquiridos no cotidiano da escola do MST e nos eventos de formação de Educadoras. Percebi que a minha relação com o PCdoB chegava a incomodar alguns setores do Movimento, que em sua grande maioria eram filiados ou simpatizantes do PT. Porém meu vínculo com a LEPEL e com a UESB, e minha atuação ativa na discussão e debate com o MST (principalmente no assentamento da Amaralina) superou em grande parte as aparentes divergências partidárias de concepções ideológicas.
Ao chegar à Paraíba tive dificuldades de participar mais diretamente e ativamente no MST, não houve uma receptividade tão satisfatória quanto a experiência na Bahia. Em João Pessoa procurei a Coordenação Estadual do Movimento e demonstrei meu interesse em contribuir com a educação. Em João Pessoa, procurei me engajar, sem muito sucesso, indo algumas vezes ao acampamento Nêgo Fuba, localizado na BR-230, estabeleci contato com a educadora da escola do acampamento e procurei participar do Encontro Estadual de Educadoras em Campina Grande e do Abril Vermelho, inclusive sendo palestrante no dia da discussão sobre a ALCA na ocupação da Lagoa do Parque Solon de Lucena. Nessas experiências percebi que não houve um interesse das pessoas que lideravam o movimento. Um dos elementos que aponto como causa para essa não aceitação da minha participação no MST se deva à opção partidária pelo PCdoB, uma vez que havia a presença nítida a presença de partidários do PT em todas as esferas do MST. Porém, após minha participação no Fórum Social Mundial de Porto Alegre (2003) e a vitória de Lula à Presidência da República deixei os quadros desse partido e passei a ter contatos com alguns grupos de comunistas descontentes com a posição do Partido Comunista do Brasil.
Apesar de fechadas as portas do MST na Paraíba, participei ainda de alguns debates inclusive da aula inaugural do Curso de História para os Movimentos Sociais do Campo - UFPB, deixando aberta a possibilidade de continuar a discussão sobre o MST no trabalho do Mestrado, mas precisando redefinir alguns posicionamentos sobre minha análise.
Em janeiro de 2004, diante do impasse e das dificuldades de acesso ao Movimento para realizar a pesquisa na Paraíba como eu havia planejado e também com a retirada dos acampados do Nego Fuba para outra localidade, encerrando assim o acampamento, resolvi que precisaria dar um novo rumo à investigação. Entendendo que para compreender a atuação da Educação do MST seria necessário entender o projeto educativo para o campo, onde se trava a disputa de projetos histórico-educacionais capitalista e da classe trabalhadora, resolvi realizar a seleção pública do Ministério da Educação (MEC) para atuar junto a projetos de organismos internacionais na Paraíba, o que me possibilitaria conhecer esses projetos. Entre esses projetos existe um vinculado à educação rural em classes multisseriadas, financiado por acordo de empréstimo do Governo brasileiro junto ao Banco Mundial. Esse projeto, denominado Escola Ativa seria o elemento que faltava para conseguir analisar as contradições do sistema capitalista atuando diretamente na escola do campo. Dessa forma, pedi exoneração da UESB, continuando enquanto colaborador do Projeto de Pesquisa do MST.
Passei a atuar como Supervisor do Projeto Escola Ativa, ligado ao Projeto Fundo de Fortalecimento da Escola (FUNDESCOLA)/Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)/MEC, o que me possibilitou o acesso a todo material da Escola Ativa. Estive presente em dois eventos nacionais com a participação de todos os supervisores dos estados contemplados com o Projeto (Norte, Nordeste e Centro-Oeste), participei também de uma capacitação para supervisores da Escola Ativa a nível nacional em Fortaleza-CE, além de participar de duas capacitações de professores e técnicos em todo o estado da Paraíba. Com a prerrogativa de supervisor estadual passei a visitar as escolas em diversos municípios da Paraíba e conhecer melhor a proposta do Banco Mundial para as escolas rurais, tendo inclusive acesso a todos os documentos da Escola Ativa. Aproveitei este período para conversar e entrevistar os coordenadores nacionais, estaduais e locais do Projeto e aplicar questionários para professores e técnicos municipais e estaduais. Percebi a grandeza quantitativa da Escola Ativa na Paraíba e seu vínculo estreito com o Projeto Capitalista de sociedade. Em novembro de 2004, após concluir a fase de pesquisa de campo da dissertação, pedi exoneração do MEC/FNDE e ingressei como professor concursado da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), atuando no curso de Pedagogia. Acredito que, apesar de meu posicionamento contraditório frente à vinculação empregatícia junto a um projeto de organismo internacional, este foi indubitavelmente a melhor maneira para ter acesso a documentos e dados. Viver a contradição não é a melhor possibilidade histórica de um militante político, mas apesar da angústia sofrida nesses onze meses, percebi o fogo queimando em minha pele, conheci de perto a estrutura governamental viciada, seja no âmbito federal, estadual e municipal. Vi e ouvi palavras que merecem ser conhecidas por toda população que trabalha duramente e que é vilipendiada por uma corja de sanguinários (representantes de grupos dominantes) que pilham a soberania nacional e se locupletam do suor alheio. Acredito que a angústia chegou ao fim e valeu a pena.
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