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29.5.14

Linguagem de Programação

Tenho certeza que ele existiu. Seu nome constava na frequência dos professores e, apesar de não haver registros fotográficos, pois era avesso a qualquer ato da coletividade, Bertran não foi uma figura derivada de passagens oníricas do ensino médio.

De fato, não há registros nas redes sociais, nem consigo encontrá-lo nos sítios de busca e muito menos vê-lo em lugares públicos. O fato é que ele pouco conversava nos intervalos, nunca foi visto nos pontos de ônibus e aquela marca misteriosa causava furor entre as garotas que a todo tempo fingiam desejo, apenas para enquadrar mais um da turma na lista dos intransponíveis.

Lembro dele nas aulas de Eletricidade Básica. Elogiadíssimo pelo temido e carrancudo professor, graças a um trabalho de magnetismo realizado em seu laboratório particular instalado em sua própria residência.

Adorava linguagem de programação e dominava, como ninguém, o natimorto Basic, além de Clipper, Pascal e Fortran.

Claro, eureca, Bertran deve ter sido uma variação do Fortran, alguma criação de um gênio que construía hologramas a partir das finadas linguagens de programação. Tudo aquilo era virtual e durou o tempo exato de três anos correspondentes ao ensino médio.

Betran C+ deveria ser o pseudônimo de uma figura randômica e efêmera, o projeto de algum cientista do século XX laureado pelo Nobel das Ciências Exatas.

Sei que ele não foi o único abduzido daquela turma do curso de eletrônica da Escola Técnica, mas, enquanto não houver vestígios do sujeito manterei esta tese como irrefutável.

19.5.14

Cartaxo não somos capachos

Concordo que a mudança brusca de professor pode acarretar problemas pedagógicos. Os alunos sentem os impactos quando isto ocorre. Mas, quando a educação é prioridade não se espera o "melhor momento pedagógico" para se colocar professores efetivos em sala de aula, faz-se este momento com a transição gradual dos prestadores em sala de aula juntamente com os novos efetivos, um mês ou dois garantindo que a qualquer tempo e hora professores possam ser nomeados.

Para que isto possa acontecer é preciso um gestor sério, comprometido com a educação e não mais um politiqueiro, daqueles que estamos cansados de ver, que num dia fala uma coisa, noutro dia fala outra, que mente sem o menor o pudor e transforma um concurso público da educação numa peça de marketing, com o objetivo de, inclusive, colocar no parlamento sua própria casta e se perpetuar no poder.

11.5.14

Dia das Mães



Frederico Linho

Na verdade eu nunca entendi o porquê de ter que forrar a cama todas as manhãs. Nem mesmo colocar a mesa para o café, depois tirar tudo e refazer o serviço para o almoço e jantar. Eu me sentia o próprio Sísifo, na sua rotina intermitente. Eu nunca entendi porque a casa tinha que estar sempre arrumada e nenhum papel poderia estar fora do lugar. Que o diga aquele encarte da Legião V, aclamado por mim durante horas e que depois tomou assento no lixo de casa, por não estar em seu devido lugar. Nem sei o que senti quando o vi sôfrego, amassado e jogado junto às cascas de banana. "É a sua mãe e te carregou por nove meses", lembrava um amigo que escutava minhas lamúrias frente ao encarte fétido. E enxugar os pratos? Por qual motivo, se a inteligência humana havia projetado o escorredor? E aquelas bermudas da hora que pouco combinavam com aquele tênis fashion? Como negar presentes de tão bom grado? Naqueles trajes de primavera havaiana era difícil encarar os chatos das aulinhas de inglês. Lembro que certa vez me recusei a calçar um daqueles 'última moda em Paris' e foi pior, pois todos os meus amigos que iam me visitar eram chamados para avaliar a beleza daquele tênis marrom-dourado. Duro mesmo era abrir a lancheira na frente dos amiguinhos, pois aquele cheiro de pão com ovo irradiava pela escola inteira e me deixava rubro de vergonha. Mas, como dizer para minha avó, que é mãe duas vezes, não colocar aquele estrelado e substituí-lo por uma singela muçarela? E aquelas estratégias sórdidas de expor o colchão mijado na varanda do apartamento ou chamar pela rua inteira quando era a hora de servir a mamadeira? Tudo bem que aos dez anos de idade já estava mais do que na hora de parar de encher o colchão de uréia e de comer papinha, mas havia outras maneiras, menos traumáticas, de me fazer amadurecer. E quando cheguei da escola com um hematoma na bochecha? Até hoje acho que fui considerado a vergonha da família por ter apanhado de um menino mais novo. E aquelas costuras, na base dos joelhos, nas minhas calças? Próprias de um jogador fadado ao fracasso e que ficavam parecendo as roupas do Sítio do Pica Pau Amarelo, mas, pelo menos, eu comemorava o São João o ano inteiro.

Desculpe-me Mãe, mas eu não quis que este dia fosse comemorado com mais uma crônica piegas e desbotada, repleto de presentes mercantis.

10.5.14

Mais uma vez parto

Eu sabia que partiria cedo
Por isso queria dar cabo de tudo
Num tempo diminuto

Queria transformar tudo
Por onde eu passava
Em milésimos de segundo

Nunca esperei dar gosto
A fruta verde da realidade
Por isso encurtei meu tempo
Envelheci com cabelos negros
Pois nem dei tempo aos grisalhos

E se hoje parto
É porque mais uma vez fracassei
Na minha agonia cesariana
Onde tudo-nada pode ser normal

Que louca mania de estuprar o tempo
Reverter doces deleites
Em pretéritos menos perfeitos

É por isso que esse parto
É apenas mais um aborto
É a procura do porto
[Seguro que não irei encontrar]

4.5.14

Carreira Docente

(Para Eduardo Coutinho)

Aos vinte e cinco anos
Descobri o significado da carreira docente

Acordava às cinco e meia
Engolia um pão amanhecido
Reservado com manteiga na noite anterior

Tomava uma ducha fria
Que despertava até os ossos

Da esquina de casa para o ponto de ônibus
Quinhentos metros longínquos
Uma carreira desenfreada para não perder a lotação

Hora e meia de viagem
Sete em ponto na escola
Recorde mundial estabelecido na carreira
Sem direito a progressão

Na terra de João Pedro Teixeira
Só enxergava os olhos tristes dos meus alunos
Cabras marcados para viver