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4.12.16

Seca

Oremos
Pela indústria da seca
em pleno século XXI

Pelo céu escarlate
Pela cachorra Baleia
que não chora nem late

Oremos
Como os gravetos secos
de olhos fundos
e chão ardente

Brindemos
com panos quentes
pela falta de tudo
com aguardente

Oremos
Por uma saída
Pela chuva rala
Pela intervenção divina

Oremos
Para que todos aqueles indignados
Com a seca alheia
Desçam de seus palanques
E venham sentir esse calor na veia

30.10.16

Provocações



Para Juljan Palmeira

À sombra de uma palmeira
Não descansam mentes perigosas
Subversivos sonhos
Microfones voadores
amplificando quimeras laboriosas

Metralhadoras poéticas
Agitam sábados subversivos
Encontro marcado
com Cabras Marcados para viver

Microfones vão voar
Disparos cíclicos
Serão nosso dia D
Serão cabeças no tempo
Subvertendo os segundos
Amplificando a autonomia intelectual

Não queremos respostas,
apenas provocações para fumar
Numa noite quente de luar...


14.10.16

My little Blue Girl

Enquanto escuto a Janis
Lembro do tempo que vivia nas nuvens
Lembro do Vietnã
E dos irmãos que lá ficaram

Lembro das metanarrativas
Tempo que sabíamos quem seguir
Lembro dos cigarros que nunca fumei
Dos canais de TV que não existiam
E de alguns amigos de infância
Que até então não eram fascistas

Lembro dos domingos de praia com meus pais
Ou das tardes de cachorro quente
Numa lanchonete de esquina em Jaguaribe

Ao ouvir a Janis
Lembro como ela era feliz
Como ela era livre
feito aquelas tardes de domingo

Ouço a Janis para me libertar
Tal qual nos tempos em que não fumei
Tal qual nos tempos que eu só precisava de um telefone de linha
E uma menina magricela para ouvir por horas

Ouço a Janis para lembrar o quanto era bom
estar apaixonado por meia dúzia de amigos aventureiros

Ouço a Janis para celebrar o tempo
O tempo que desejei ser hippie
Andar estrada afora sem a menor intenção de um dia voltar para os cachorros quentes de domingo

E quando a música da Janis terminar
Estarei de volta ao tempo da subjetividade
Às músicas de baixo calão
E a falta constante de créditos para poder ligar para aquela amiga magrela

Germe

Existe um germe dentro de mim
Existe um germe em plena lua cheia
Cheio de luas para orbitar

Este germe geme
Come ovo com clara e gema
Esse germe é meu tema
cotidiano

Todos os dias do ano

Este germe sou eu
É meu germe autofágico
É meu destino trágico

Este germe é o meu arrependimento
Guardado durante tempos
No meu apartamento
Em caixas verdes de departamento

Este germe é como um bicho geográfico
Que me atravessa de norte a sul
Comendo minha carne

De um cheiro atávico
Este germe me faz lembrar tão bem
Dos bons tempos de infância
Da luta de meu avô por um ramo de trem

Este germe sou eu
Ele repete
Como uma cantilena
Doce e fria

Este germe geme treme
Escreve em letras garrafais
Como se fosse tatuagem
Como se fosse o próprio Caifás

Este germe é minha coceira intermitente
Faz de tudo para estar presente
Por mais eu que tente e tente e tente e tente

Por mais que eu morda
por mais que eu mostre meus dentes
Este germe implantando
Será lavoura e colheita
Neste meu deserto tão árido

Um dia este germe
Descansará em paz
Numa saída sem muito alarido
Não terá mais quem sugar
Nem feriados chuvosos para comemorar
Nem tão pouco lágrimas para enxugar

25.9.16

Poema morto

Escrever (tentativas) poéticas
É como mergulhar num pântano
artificial

Não corto os pulsos como o Veríssimo
Mas desejo, caro leitor
que você imagine que o autor morreu

Atolou-se nesse lodo poético movediço
Morreu sem ar
sem luz
sem isso

Morto, caro leitor
Não posso responder sobre o que escrevi
sobre quem escrevi
ou como estou me sentindo

Morri com o poema
Morri com as tentativas
Agora ele fede
Está em decomposição

Cabe a você, caro leitor
usar a imaginação
E quem sabe mantê-lo dessepulto

Ensaio sobre minha cegueira

Precisei ensaiar minha cegueira
Para poder enxergar melhor

Precisei ensaiar minha cegueira
Para poder cantar a vida melhor

Precisei ficar cego
Para compreender a cegueira do outro

Precisei estar cego
Para ver minha própria cegueira

Minha cegueira é minha condição de visão
É quase gagueira
No parlamento imundo

Minha cegueira é minha condição de estar no mundo
É poder enxergar os limites do outro

Estou cego
nada sinto
E ao mesmo tempo compreendo a visão
E sei porque minto

Estou cego e corro
E todos que enxergam
param
Doentes de poliomielite

Estou cego
E tantos que enxergam
Vêem só o pensamento da elite

Minha cegueira é como um parto
Ante o aborto das minhas convicções
soterradas num pacto

Estou
cego
surdo
mundo

E a toda hora mudo o canal
para nada ver além do ego

23.9.16

Etc

Não preciso mais ouvir músicas deprimentes
Para escrever meu poemas e sentir as vilanias
Basta ligar a TV e ver os políticos que mentem
Basta ir à feira ver os preços e orar para que não aumentem

Não preciso querer compor
deprimente
Já basta o canal que não abre a mente
Já basta a geladeira vazia
comumente
Já basta ler o jornal e ver
como mente

Já não preciso forçar a barra da dor deprimente
Basta ver o consumo rasteiro das ideias
intermitentes
Basta ver a briga interna
dos meus entes

Já não preciso saber quem sou
ou quantos dentes
Parecem visões prementes

Visões emparelhadas de um futuro pouco decente

et ceteramente

15.9.16

eu, vezes nada

Eu, trambolho de gente
Deixo essa última carta
Escrita com o dente
trincado de ódio

Eu, trambolho de gente
Filho do Augusto e do amoníaco
Sinto cheiro de enxofre
Nas cadeiras de chefes demoníacos

Eu, trambolho de gente
Cego de um olho
Míope de outro
Só enxergo meias verdades

Eu, trambolho de gente
Sou maltrapilho
Indecente
Visconde feito de milho

Eu, trambolho de gente
Sou uma rima no deserto
Uma lágrima no oceano
Ninguém de fato, decerto

Eu, trambolho
Às vezes gente
Às vezes ato
Às vezes nada
vezes nada

29.8.16

Heroína

Heroína

(para Janis)

Nunca usei heroína
Nunca quis ser herói
Ou cowboy
Neste filme sem mocinho
que a vida predestina

Paguei a conta com o preço alto da coerência
Em meio a tanta displicência
Daqueles que um dia juraram lealdade

Os meninos da rua continuam com baleadeiras
Mesmo que já não tenham mais idade
para tanto

Subi e desci ladeiras
Às vezes sóbrio
Às vezes reu
Nunca montado em pedestal de ouro
Sem pés alados a caminho do céu

Nunca usei heroína
Nunca corri o risco de não amanhecer
Aos vinte e sete
Num quarto triste de hotel

Nunca gritei para me mostrar
Ou desafinar
Meu grito era em dó maior
Era o grito do meu tempo
Para sustar os agentes laranjas
Colhidos nos pés podres de barro

Vai Janis
Atira para todos os lados

Tua voz e teus gritos
São balas de anis
Só perfuram carnes amargas
cheias de ardis

25.8.16

Canibais

Estou embrutecendo
Uma colônia se espalha ao meu lado
Vermes crescendo
Sem parar

Poemas não brotam mais
Nesse desaguadouro
De canibais

Sujeitos comem minha carne
Repelem meus livros
Queimam meu corpo que arde

Estou embrutecendo
Estou emudecendo
Estou descendo
ladeira abaixo

Sinais dos tempos
De silêncio e tecnologia
Sinais dos tempos
Ventos conservadores
Não alimentam a autofagia

Guitarras não reagem mais
Crianças não reagem mais
Meus sonhos não suspiram mais

E (quase) todos escondidos com medo
dos canibais

1.8.16

Aqui jaz

Já imaginei minhas cinzas jogadas ao mar
Nesse mar revolto
Nessa química perfeita
De ondas coloridas e paisagens resolutas

Já imaginei essa louca amálgama
De cinzas e sonhos
De derradeiros desejos

Essa enseada
O platô que anuncia a vida
O verde misturado ao azul
As rochas valentes

As ondas quebrando
O som da ressaca estridente

Não esqueçam
Exatamente neste ponto
Onde anunciam a jurema
Deixem minhas cinzas
(eu preferia a carne viva)
Alimentar essa última aventura extrema

23.7.16

Tudo

Eu já tentei de tudo

Tentei fazer omelete sem quebrar os ovos
Tentei construir parede sem tinta vermelha
Descansei no sétimo dia
Na sombra de uma rede

Enfrentei os sete mares
Descrevi vidas em xilogravura
E acabei fixo, numa moldura

Já tentei de tudo
Fiz da vida uma cozinha de forno a fogão
Fiz poupança, espada, lança e redenção

Eu pensei que éramos muitos
Nessa síndrome tecnológica da austeridade

Terminamos sós
Nus
Abatidos na tenra idade

19.7.16

(quase) todos os olhos

Para tom, Zé!


violência

Corro da violência
Das vicissitudes
Do sangue que corre em minhas veias

Corro da violência
Da falta de atitude
Das estatísticas
em larga escala

Larga minha mão
Beija minha boca
Sangra meu beiço robusto

Larga meu peito
Esfola meu busto
Me diz quanto vale
O custo
(Brasil)

Chega de violência
Chega mais violência
Chega de violetas
E roletas russas

Eu sou minha própria violência
Estilhaço pedaços de mim
Me engulo
Sou o verme do meu próprio cadáver

Lesto e seguro
Digo adeus na hora da chegada
E abro mão do meu sangue puro

16.7.16

Os dez últimos dias

Os dez últimos dias
E o som não mais principia
Sem tese, antítese ou síntese

Não há cura
Para uma doença de dez dias

Não há cura
Para longas passionais

Não há cura
Para lutas inglórias

Não há cura
Para vizinhos inescrupulosos

Não há cura
Para orquestras desafinadas

Não há cura
Para trabalhos vazios

Não há cura
Quando se quer apenas dez últimos dias

Não há cura

Não acuda

Não acura

Não cura

Não...

6.5.16

Oração

Desejo que você não se vá
Depois de um dia obscuro
Depois de ter que pular tanto muro
Desejo que você não se vá 

Depois de esbarrar com tantos empertigados
Depois de assistir tanta tevê vazia
De ter que conviver com essa azia
Por favor, não se vá 

Depois de olhar para o meu umbigo
E ver um sujeito ignóbil
E saber que é tão óbvio
Que sou tão egoísta quanto essa res publica

Você me responde com um tapa de luvas
Com uma clave de sol resplandecente
- Durma com a escuridão e com a sua visão turva

29.4.16

Contingência

Sou do tipo revolucionário
Que deserta da guerrilha rural
No primeiro sinal
De um amor beligerante
Que se encanta com os acordes doces

E não chego a endurecer
Só em pensar em perder a ternura
Num bravo amanhecer

Por esse motivo
Não me alistei
Preferi a reserva de contingência
Por um desejo furtivo

Preferi ficar quieto
Escutar tuas músicas
Teus acordes
E dormir apaixonado
Eternamente,
no teu colo esplêndido

28.4.16

Nau

Se um mar revolto Agita teu coração Atormenta rotas e a navegação Toma uma dose de uma voz doce
Que intensiona, simplesmente, aplacar a falta que faz você 

Conto as horas para chegar num porto seguro Conto as horas para ouvir, de longe, sinalizadores afinando o tom Que me torna mais maduro

É mais que preciso, esse doce canto Quase pueril, cheirando a tenra idade Em qualquer canto  
Te escuto e esqueço a maturidade
Lágrimas rolam, descem embarcações Tecem desejos, emoções Traçam caminhos ao longo dos embarques Dessa viagem melódica repleta de talvez

Como eu queria Embrulhar tua voz em papel de jornal Carregar comigo em cada partida Tuas músicas, tipografadas Como uma tatuagem Em todas as viagens na minha nau

26.2.16

Novidade

Depois da febre dos 40
Ando repetitivo demais

Sem novas palavras
Sem novos temperos

Poemas com o mesmo fim
Caldo de feijão preto com o mesmo sabor

Se ao menos soubesse fazer um tropeiro
Ou escrever romances sem fim

Até os cabelos brancos parecem iguais

Qual a novidade nos canais de TV?
Qual a novidade nos anais da história?
Qual a novidade da máquina de escrever?

A vitrola roda os mesmos discos de 1980
O noticiário estampa as mesmas manchetes de 70

Qual a novidade desses poemas sujos?
Qual a novidade do Cristo redentor?
Qual a novidade deste sistema predador?

João Pessoa não virou Paraíba
Goulart não foi assassinado
Getúlio não criou o Fundo de Garantia

Qual a novidade no Cine Banguê?
Qual a novidade na obra de Zé Lins?
Qual novidade vai me fazer feliz?!??!??!

25.2.16

Perdão

O teu pedir perdão
É um salto no infinito
do tempo
As mágoas, as contradições
As feridas abertas

O teu pedir perdão
É uma carta sem logradouro
Palavras que chegarão
No desaguadouro
da ilusão

Peço perdão por ti
E vou dormir em paz

24.1.16

Cabelos Brancos

Prefiro o som ardente dos gritos torturados
A esse silêncio profano da legalidade instituída

Prefiro a cadeira elétrica
o pau de arara
o verdugo encapuzado
À lerdeza infinita e deliberada do Tribunal de Justiça

Prefiro ser enterrado como suicida
A esperar pelo julgamento da minha causa

Prefiro as bombas em bancas de jornal
Do que esse imprensa comprada

Prefiro as barricadas, os molotovs
o manual do guerrilheiro urbano
a esses partidos de outubro

Mas, são tempos vindouros
que engoliram o tempo passado
É uma era do ouro
que se expande com crédito cidadão

O que estava expondo
agora camuflado
O que era violência
agora paz dos túmulos
O que era tortura
virou crise [ano que vem o país volta crescer]
O que era exploração
oportunidade
O que era rebelião
idiotice
O que era mínimo
salvação
Coisa do passado
anacronismo de cabelos brancos

E continuo escutando os Beatles numa vitrola de agulha
Datilografando poemas num máquina vermelha
Escovando os dentes com juá
E vou continuar me recusando a pintar os cabelos
mesmo que aqueles 21 anos ainda perdurem

Escaravelho

9.1.16

Feridas

Minhas feridas abertas
hoje demoram a cicatrizar

Antes fechavam em pouco tempo
gotas de mercúrio cromo e paciência

Mas não causam inveja às feridas internas
Centenárias, purulentas, viris e teimosas na cicatrização