27.9.20
Medo
5.9.20
Menino
Não tenho tempo para agruras
Nem para subjetividades
O menino pobre que puxa a carroça
Grita no meu pé de ouvido
Sigo descalço, humilde
Não sinto as trepidações do asfalto
Não sinto o cheiro ocre da latrina
Nem o gosto da miséria
O menino pobre que puxa a carroça
Vem puxar meu pé à noite
Não deixa que eu assista à minha série favorita
Sussurra que a vida não é ficção
Missa do Galo
Para onde vão os poemas?
Por quem os sinos dobram?
Por que a lápide está em branco?
Por que as beatas não estão rezando?
Não são perguntas
São retóricas
São resumos e histórias
São sentimentos histéricos
que batem à porta ao som da meia noite
Nasci
Eu nasci para ser poeta
Morrer de fome pelos meus escritos
Morrer de amores pelas minhas dores
Eu nasci para ser poeta
Meia vida de inspiração
Meia dúzia de indignação
Eu nasci para ser poeta
Meia vida afinando letras
Meia vida tocando versos desafinados
Eu não nasci
Eu pari um poema
e abortei palavras
30.8.20
Não é mais Merthiolate
Eu não sou mais um garoto dos anos 80
Não bebo mais por esporte
Não cruzo mais a Epitácio Pessoa
Causando tormenta
Eu não sou mais meu próprio líder
Eu não transito mais na infinita Highway
Eu não uso óculos
E as meninas do Leblon olham pra mim
Eu não sou inútil
Mas continuo sem saber votar para presidente
Meu pulso não pulsa
E não sei mais falar em Õ Blésq Blom
Cadê o feliz aniversário
E os velhos da cidade?
Não tenho mais fixação por nada
Nem tenho mais sonhos (não vou te contar)
Não vejo mais miséria em qualquer parte
Nem as riquezas indiferentes
Deixei de amar os Beatles e os Rolling Stones
(E o Papa não é mais pop)
Kafka não quer mais ficar comigo
Nem encontro mais baratas na cozinha
Não tenho mais os discos do Sex Pistols
E agora sou amigo do Rei
Eu só quero mandar flores para o delegado
E perguntar Quem é você?
Nada mais do (Anjo) Gabriel
E a felicidade de matar o presidente
Não quero mais jogar polo aquático na cama
Usar cobertores como lençóis
Não quero mais comer as calcinhas bélicas da Kátia Flávia
Para não explodir o exocet e devastar os peixes voadores
Não puxo mais as barbas de Deus
Nem mando beijos pelo ar
Não cavalgo mais no meus desatinos
Muitos menos carrego balões pelo mar
Eu não sou mais um garoto latino-americano
Agora sou fã do vermelho, branco e azul
Não toco mais o blues do Baader-Meinhof
E não
leio mais as Veias Abertas da América (do Sul)
29.8.20
Quarentena
Circulo entre as quatro paredes do meu metro quadrado
O quarto de Van Gogh e suas proporções
A cela de Mandela e sua solidão
Tenho febre de liberdade
Tenho cores acinzentadas
Tenho o cheiro de uma solitária
O sol queima o black out que protege as manhãs
O café quente anuncia mais uma rotação do eixo central
Os livros empilhados são fiéis companheiros
Eu não uso black tie
Eu não rogo a deus uma prece
Eu não tenho mais um inimigo que se preze
A vida não é mais uma mistificação
Eu não sangro mais quando canto
Eu não sou mais um herói da resistência
Eu não sou mais meu próprio líder
Eu não sou mais um operário em construção
Eu sou apenas alguns metros quadrados
Cercado pelos meus restos mortais
9.7.20
Mojar
Sinto-me como uma vaca amojada
Desconfiada da presença inumana daqueles que se apropriarão das minhas tetas
Sinto-me no abatedouro
Encurralada, prestes a doar carne para um frigorífico do tráfico negreiro
Leite e carne exploradas
Na minha pele malhada
Leite e carne exploradas
Ante meu olhar desconfiado
Leite e carne exploradas
No sumidouro desse vale infértil
Leite e carne baratas
Vejo o mundo por frestas
Leite e carne baratas
Olho desconfiada para meus algozes
Leite e carne baratas para alimentar quem gera fome
30.5.20
EU NÃO CONSIGO ACREDITAR...
22.5.20
Perguntas de uma criança de 9 anos
Carta para Theo
4.5.20
Fatos
o presidente ditador respondeu:
Vá a merda!
Quando questionado sobre os mortos do vírus avassalador
o presidente saudoso dos generais respondeu:
E daí?
Quando perguntado sobre o povo
o presidente ditador respondeu:
Prefiro o cheiro dos cavalos
Quando perguntado sobre a vida do povo
o presidente saudoso dos generais respondeu:
Prefiro a economia
Cavalos, ditadores, generais, economia
Tudo isso cheira mal
Basta o povo apurar seu olfato
Cavalos, ditadores, generais, economia
Tudo isso cheira mal
Basta o povo não tolerar a distorção dos fatos
Imortais
Nem Sartre segurou
Nem Virginia Woolf evitou Newton
Imiscíveis, autores foram abaixo
Numa velocidade estonteante
Não restou livro sobre livro
Clarice assustada
Gabriel não teve tempo de reação
Drummond despertou de um longo sono
Imortais meus autores preferidos
vieram abaixo
Imorredouros safaram-se sem muitos traumas
Uma ou outra página amassada
Nada mais
Já recompostos, prontos para leitores ávidos
30.4.20
2020: Uma Odisseia no espaço educacional
26.4.20
Bêbado
Tão confuso das ideias
Estado de euforia
De choro
De medo
De alegria
De tristeza
Bebeu pelos sonhos quebrados
Pelas asas queimadas
Do Ícaro vencido
Bebeu pela vida
Pela morte
Pela esperança tão escassa
Bebeu a garrafa vazia
De alma lavada
Estava tão bêbado da fermentação política
Da ebulição dos fatos
Da erupção onírica
Que vagou sozinho pelos corredores da casa
Sem conseguir encontrar a si mesmo
16.4.20
Os ombros do mundo
Lembrei de meu pai
Com os ombros em cima da mesa
Numa madrugada fria de 1986
Pensava na vida?
Na inflação do Sarney?
No imposto de renda?
Ou em outras mulheres?
Nunca sei
Nunca saberei
Ombros em cima da mesa
Não suportavam o mundo
Suportavam a cabeça escorada
E o peso daquele silêncio sombrio
Hoje, meu pai
Aos 46 do segundo tempo
Ainda consigo ver teus olhos
Mas teus ombros não carregam mais a dor do mundo
O mundo está escorado
Esperando que alguém acorde de madrugada
E sinta seu suspiro ofegante
Como quem pedindo socorro
Como quem pedindo um afago
15.1.20
Ex
ex poente
agora sou nascente
mais experiente
ou sol nascente
pronto para que você me experimente
sou meu expurgo
ex puto
sou todo ex
sou exílio
ex idílio
ex amor
ex lágrima
ex vida
ex em tudo
exasperado
temperado em aço
ex mudo
ex mundo
sujismundo
tudo ex
em tudo