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27.9.20

Medo

Tenho medo de morrer com um balaço na cabeça
Tenho medo que o fim do mês acabe e que eu não tenha nem um pedaço de queijo
Tenho medo que meu patrão me ligue e anuncie o fim do contrato
Tenho medo de ler Paulo Coelho e gostar ao menos de um parágrafo

Tenho medo de ter medo
medo do medo do medo

Medo que essa noite não termine
que Marielle não renasça
Medo de esquecer os nomes dos reaças
Do cabo anselmo e do brilhante ustra

Tenho medo que os filmes que assisto não saiam mais de mim
que meus ídolos existam de verdade
E que tudo isso não seja um pesadelo

Tenho medo da volta do Collor
dos fiscais do Sarney
da Guerra Fria
e do Gorbachev

Tenho medo dos meus vinis ganharem vida
do meu passado se tornar presente
e que essa letra vire um hit em plena recessão dos anos vinte

5.9.20

Menino

 Não tenho tempo para agruras

Nem para subjetividades


O menino pobre que puxa a carroça

Grita no meu pé de ouvido


Sigo descalço, humilde

Não sinto as trepidações do asfalto


Não sinto o cheiro ocre da latrina

Nem o gosto da miséria


O menino pobre que puxa a carroça

Vem puxar meu pé à noite


Não deixa que eu assista à minha série favorita

Sussurra que a vida não é ficção

Missa do Galo

 Para onde vão os poemas?

Por quem os sinos dobram?

Por que a lápide está em branco?

Por que as beatas não estão rezando?


Não são perguntas

São retóricas

São resumos e histórias

São sentimentos histéricos

que batem à porta ao som da meia noite

Nasci

 Eu nasci para ser poeta

Morrer de fome pelos meus escritos

Morrer de amores pelas minhas dores


Eu nasci para ser poeta

Meia vida de inspiração

Meia dúzia de indignação


Eu nasci para ser poeta

Meia vida afinando letras

Meia vida tocando versos desafinados


Eu não nasci

Eu pari um poema

e abortei palavras

30.8.20

Não é mais Merthiolate

Eu não sou mais um garoto dos anos 80

Não bebo mais por esporte

Não cruzo mais a Epitácio Pessoa

Causando tormenta

 

Eu não sou mais meu próprio líder

Eu não transito mais na infinita Highway

Eu não uso óculos

E as meninas do Leblon olham pra mim

 

Eu não sou inútil

Mas continuo sem saber votar para presidente

Meu pulso não pulsa

E não sei mais falar em Õ Blésq Blom

 

Cadê o feliz aniversário

E os velhos da cidade?

Não tenho mais fixação por nada

Nem tenho mais sonhos (não vou te contar)

 

Não vejo mais miséria em qualquer parte

Nem as riquezas indiferentes

Deixei de amar os Beatles e os Rolling Stones

(E o Papa não é mais pop)

 

Kafka não quer mais ficar comigo

Nem encontro mais baratas na cozinha

Não tenho mais os discos do Sex Pistols

E agora sou amigo do Rei

 

 

Eu só quero mandar flores para o delegado

E perguntar Quem é você?

Nada mais do (Anjo) Gabriel

E a felicidade de matar o presidente

 

Não quero mais jogar polo aquático na cama

Usar cobertores como lençóis

Não quero mais comer as calcinhas bélicas da Kátia Flávia

Para não explodir o exocet e devastar os peixes voadores

 

Não puxo mais as barbas de Deus

Nem mando beijos pelo ar

Não cavalgo mais no meus desatinos

Muitos menos carrego balões pelo mar

 

Eu não sou mais um garoto latino-americano

Agora sou fã do vermelho, branco e azul

Não toco mais o blues do Baader-Meinhof

E não leio mais as Veias Abertas da América (do Sul)

29.8.20

Quarentena

Circulo entre as quatro paredes do meu metro quadrado

O quarto de Van Gogh e suas proporções

A cela de Mandela e sua solidão


Tenho febre de liberdade

Tenho cores acinzentadas

Tenho o cheiro de uma solitária


O sol queima o black out que protege as manhãs

O café quente anuncia mais uma rotação do eixo central

Os livros empilhados são fiéis companheiros


Eu não uso black tie

Eu não rogo a deus uma prece

Eu não tenho mais um inimigo que se preze


A vida não é mais uma mistificação

Eu não sangro mais quando canto

Eu não sou mais um herói da resistência

Eu não sou mais meu próprio líder

Eu não sou mais um operário em construção


Eu sou apenas alguns metros quadrados

Cercado pelos meus restos mortais

9.7.20

Mojar


Sinto-me como uma vaca amojada
Desconfiada da presença inumana daqueles que se apropriarão das minhas tetas

Sinto-me no abatedouro
Encurralada, prestes a doar carne para um frigorífico do tráfico negreiro

Leite e carne exploradas
Na minha pele malhada
Leite e carne exploradas
Ante meu olhar desconfiado
Leite e carne exploradas
No sumidouro desse vale infértil

Leite e carne baratas
Vejo o mundo por frestas
Leite e carne baratas
Olho desconfiada para meus algozes
Leite e carne baratas para alimentar quem gera fome

30.5.20

EU NÃO CONSIGO ACREDITAR...


Para George


Um emprego que se foi na pandemia

- eu não consigo respirar...

Um pai de família procurando comida

- eu não consigo respirar...

Uma nota de 20 dólares

- eu não consigo respirar...

Uma ligação para a polícia

- eu não consigo respirar...

Uma imobilização desmedida

- eu não consigo respirar...

Um homem pedindo pela mãe

- eu não consigo respirar...

A força bruta do extermínio da população negra

- eu não consigo respirar...

A pena de morte institucionalizada

- eu não consigo respirar...

Mais uma vida brutalmente ceifada

- eu não consigo acreditar.

22.5.20

Perguntas de uma criança de 9 anos


Pai, para que um prédio tão grande?
Porque a Justiça exagera...

Pai, por que aquele homem atirou em Lennon?
Porque a maldade existe...

Pai, e aquele cogumelo explosivo matou crianças?
Crianças, mulheres, homens, idosos e inocentes...

Pai, quem ganhou a Guerra Mundial?
Os soldados mortos perderam...

Pai, as pessoas moram naqueles barracos?
Sobrevivem...

Pai, é verdade que aquelas crianças não comeram hoje?
E nossa mesa está farta...

Pai, aqueles trabalhadores são explorados?
Todos os dias e de forma natural...

Pai, e aquelas roupas de Ghandi?
Representam a resistência...

Pai, tudo isso tem cura?
Só não há cura para a dor das minhas respostas...

Carta para Theo


Amado T.,

Parece-me que os desdobramentos dos meus atos ficarão marcados para sempre
A realidade enclausurada, as pernas encurtadas e a falta de sol indicam que,
mesmo com o retorno da normalidade, não conseguirei recompor o que foi perdido

Em resumo, mutilei uma orelha surda
Os girassóis murcharão no vaso amarelo
O ceifador continuará solitário e desconhecido
A bala teimará em não sair do meu corpo

Continuo assintomático com a venda de apenas um quadro em vida
Nem febre, nem dor, nem ganho
Tudo isso vai passar
Inclusive eu

Com amor,
V.G.

4.5.20

Fatos

Quando questionado pelo professor universitário perseguido e demitido
o presidente ditador respondeu:
Vá a merda!

Quando questionado sobre os mortos do vírus avassalador
o presidente saudoso dos generais respondeu:
E daí?

Quando perguntado sobre o povo
o presidente ditador respondeu:
Prefiro o cheiro dos cavalos

Quando perguntado sobre a vida do povo
o presidente saudoso dos generais respondeu:
Prefiro a economia

Cavalos, ditadores, generais, economia

Tudo isso cheira mal

Basta o povo apurar seu olfato

Cavalos, ditadores, generais, economia

Tudo isso cheira mal

Basta o povo não tolerar a distorção dos fatos

Imortais

A estante de livros desabou
Nem Sartre segurou
Nem Virginia Woolf evitou Newton

Imiscíveis, autores foram abaixo
Numa velocidade estonteante
Não restou livro sobre livro

Clarice assustada
Gabriel não teve tempo de reação
Drummond despertou de um longo sono

Imortais meus autores preferidos
vieram abaixo

Imorredouros safaram-se sem muitos traumas
Uma ou outra página amassada
Nada mais

Já recompostos, prontos para leitores ávidos


30.4.20

2020: Uma Odisseia no espaço educacional



             Aos 50 anos, 30 dedicados ao ofício de cabeleireiro, resolveu cursar a universidade espelhado no exemplo dos filhos que, depois de muito sacrifício, conseguiram virar “doutor”. Filho de pais agricultores, do interior do nordeste, concluir o primário era uma grande conquista. Mas, os tempos mudaram e a exigência de ter uma formação universitária é algo precípuo na pós-modernidade, mesmo que fosse para colocar o diploma numa moldura, pendurá-lo na parede do Salão do Valdemar e lustrá-lo todos os dias.

Ele sabia que os ganhos com a formação universitária iriam além do brilho na moldura do diploma. Sabia também que a sua posição honrada de cabeleireiro não seria deposta após a conclusão de um curso superior na área de saúde. Adorava dizer aquele nome completo: Joaquim José da Silva Xavier, era apaixonado pelos livros que tinham o mártir da Inconfidência como protagonista, de comemorar seu aniversário junto com o feriado nacional e estava realizando o sonho de ter a profissão de Tiradentes.

            A duras penas trabalhava o dia todo no Salão e cursava a faculdade à noite. Já estava na metade do curso, realizando estágios, abrindo bocas e planejando sorrisos de populares que sentavam àquela cadeira branca tão temida. Durante aqueles semestres letivos teve que reaprender a estudar, dominar as Tecnologias de Informação e Comunicação e enfrentar as disciplinas à distância. As ferramentas digitais rodeavam o dia a dia da faculdade de maneira bem diferente dos tempos de primário. Quando criança, o máximo que possuía de tecnologia em casa era uma TV com imagens preto e branco e dominava como ninguém a arte de sintonizar canais.

            Comprou um computador e passou a realizar os trabalhos das disciplinas do curso usando o que era de mais avançado, de editores de texto a planilhas eletrônicas, além dos softwares que o ajudavam a realizar as pesquisas acadêmicas. No começo sentia-se como o símio do Kubrick com um osso na mão, descobrindo a ferramenta elementar do processo de evolução do ser humano, afugentando os rivais e devorando um pedaço de carne pela primeira vez na vida.

            O grande desafio estava por vir. De repente, seu vocabulário ficara mais rico com uma palavra indesejada: pandemia. A quarentena forçada fez seu mundo desabar; nunca na vida havia fechado o Salão por um dia sequer, era conhecido por todos do Ponto Cem Réis como o cabeleireiro mais assíduo da região, condição sine qua non para auferir sua renda e criar os filhos.

            Não tinha muito o que fazer, esperar do governo um auxílio e enquanto isso viver da minguada poupança, dinheirinho suado que conseguiu juntar ao longo de duros anos de trabalho e que já havia sobrevivido ao ataque de um presidente destemperado. Sua cabeça estava voltada mesmo para as aulas na faculdade, como seriam? O que iria acontecer com o curso a partir daquele isolamento social?

            De pronto bateu um desespero, os planos de contingência elaborados pelos gestores da faculdade apontavam para aulas remotas, síncronas, utilizando o Ambiente Virtual de Aprendizagem e provas digitais. Para a juventude aquilo tudo estava à palma da mão, para ele seria uma Odisseia, um desafio sem precedentes. Como fazer para continuar os estudos naquela prisão sem grades, naquele confinamento que parecia não ter fim?

            As primeiras aulas geraram uma certa desconfiança... será que realmente funcionaria ou seria um arremedo? Um certo professor começara a aula afirmando que o sistema virtual era uma ferramenta poderosa, outro compartilhou a tela com os slides, alguns rabiscavam a lousa digital com tanta naturalidade e usavam vídeos oriundos das plataformas digitais como se estivéssemos nas aulas presenciais. Até laboratórios digitais apareceram em cena, garantindo que aquele tempo obscuro de pandemia seria suave no tocante ao processo de ensino aprendizagem.

            Já que todos estavam na mesma trincheira, dava para imaginar a cena dos professores: casa com crianças, rotina de lavar louça e o piso da casa, arrumar o espaço ideal para ministrar as aulas síncronas, se adaptar ao processo de ensinar sentado numa cadeira, etc. O que ficou mais patente foi o brilho nos olhos dos educadores, o entusiasmo nos momentos de aula, os slides caprichosamente definidos e até a ousadia de realizar um Kahoot durante uma webconferência!

            A Odisseia no espaço estava completa, não mais com a cara do símio que aprendera a dialética do movimento humano de forma tortuosa, mas com a pisada suave do Armstrong em solo lunar, parafraseando a clássica frase: um pequeno passo para o homem, um grande salto educacional.

26.4.20

Bêbado

Nunca havia estado tão bêbado
Tão confuso das ideias
Estado de euforia
De choro
De medo
De alegria
De tristeza

Bebeu pelos sonhos quebrados
Pelas asas queimadas
Do Ícaro vencido

Bebeu pela vida
Pela morte
Pela esperança tão escassa

Bebeu a garrafa vazia
De alma lavada

Estava tão bêbado da fermentação política
Da ebulição dos fatos
Da erupção onírica
Que vagou sozinho pelos corredores da casa
Sem conseguir encontrar a si mesmo

16.4.20

Os ombros do mundo

Hoje aos 46
Lembrei de meu pai
Com os ombros em cima da mesa
Numa madrugada fria de 1986

Pensava na vida?
Na inflação do Sarney?
No imposto de renda?
Ou em outras mulheres?
Nunca sei
Nunca saberei

Ombros em cima da mesa
Não suportavam o mundo
Suportavam a cabeça escorada
E o peso daquele silêncio sombrio

Hoje, meu pai
Aos 46 do segundo tempo
Ainda consigo ver teus olhos
Mas teus ombros não carregam mais a dor do mundo

O mundo está escorado
Esperando que alguém acorde de madrugada
E sinta seu suspiro ofegante
Como quem pedindo socorro
Como quem pedindo um afago

15.1.20

Ex

sou um ex poeta puto
ex poente

agora sou nascente
mais experiente
ou sol nascente
pronto para que você me experimente

sou meu expurgo
ex puto

sou todo ex
sou exílio
ex idílio

ex amor
ex lágrima
ex vida

ex em tudo
exasperado
temperado em aço
ex mudo

ex mundo
sujismundo
tudo ex
em tudo