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7.1.06

Os olhos vivos de João Pedro Teixeira

Sexta-feira, 24 de maio de 2003, estive de volta a Sapé/PB. Fui com olhos de João Pedro, fui por Café-do-Vento, para melhor ver a alma dos trabalhadores de Sapé. Deixei a cidade em 2000 para trabalhar no Crato/CE, mas no período de 1999/2000 consegui enxergar como funciona a engrenagem dos que pilham a liberdade humana.
Em 1999, após concurso público, atuei como professor de Educação Física na Escola Municipal Luis Ribeiro e juntamente com professores de outras áreas começamos a sentir o cheiro do descaso. Salário baixo, perseguições, notícias sobre corrupção nos jornais da capital, cassação do prefeito (por oito vezes), denúncias, escândalos, violência. Nossos olhos sentiam mais: o porteiro da escola esquálido, faminto (Severino de pia), estava sempre com o salário atrasado; o diretor da escola poderoso, biônico, não era menos famélico, porém onipotente, comia osso e arrotava filé; os alunos atônitos, sem computadores, sem comida, sem merenda, sem arte, sem cultura; a cidade sem projetos, cheia de bandidos e democrática na base da chibata e do revólver; a população... sem trabalho, sem renda, usurpada, por vezes calada. E nós professores da segunda fase? Éramos oito (talvez), quase todos da capital, quase todos a espera do estágio probatório terminar e poder equalizar a voz rouca que teimava em não sair.
Esse quadro corroia minh’alma nos retornos solitários à João Pessoa, buscando respostas a tantas injustiças, com tantos corações postos a prova! Nesse entre e sai de Sapé, articulamos denúncias, fizemos assembléias, passeatas, escrevemos para o INSS, Tribunal de Contas, ligamos para o MEC, mandamos mensagens eletrônicas com revelações e revelações dos esquemas fraudulentos da Prefeitura. Pequenas vitórias, cassações, assume o vice, tudo como dantes! Na assunção do vice, o prefeito cassado acusava o antigo aliado, que por vezes parecia mais fraudulento que o antecessor.
E o povo? Esquecido, caluniado, deixado de lado, no embate democrático corria solta a propina, a humilhação. A fome, a miséria, o atraso, o descaso. Possível lembrar agora de Perfeição (Renato Manfredini Júnior): “vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações, meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões (...) vamos celebrar nosso governo e nosso Estado, que não é nação (...) vamos comemorar como idiotas a cada fevereiro e feriado, todos os mortos na estrada, os mortos por falta de hospitais...”
Já corria no meu semblante o torpor, o descrédito, uma amálgama de revolta e impotência. Mas, numa dessa viagens, encontrei Jorge e seus papéis para a criação do Sindicato dos Servidores do Município, o que parecia uma pequena luz na escuridão. A labuta diária me fez acompanhar de longe a formação do sindicato, que se concretizou, tendo Jorge a frente junto alguns primeiros sindicalizados.
Enfim a soma de forças, contradições e lutas faz com que o Prefeito não consiga a reeleição e termine por passar alguns meses na Prisão Máxima de Mangabeira, a princípio uma vitória popular.
Mas o que é ser popular? É trocar de Prefeito, “eleito” pelo povo? O retorno a Sapé me disse o contrário. Estive por apenas uma manhã. Encontrei os velhos amigos-professores, por um acaso os mesmos, pois só eu havia deixado o Luis Ribeiro, encontrei Jorge, presidente do sindicato, editando o Jornal Força de Expressão. Conversei com os alunos, com os professores, com os sindicalistas... na verdade encontrei a mesma fome de outrora.
Pouca coisa mudou..., reformaram a escola! A mesma escola, sem computadores, sem atrativos, sem formação continuada. A mesma cidade do ano de 2000 (quando a deixei), a cidade de número 4128 (a partir da melhor situação social) dos 5507 municípios do Brasil, com índices de 0,211 de pobreza (numa escala de 0 a 1, que quanto maior o índice, melhor a situação social e entre 0 e 0,4 encontra-se no pior nível), 0,545 de alfabetização, pasmem 0,251 de escolaridade, 0,048 de emprego formal!, 0,020 de desigualdade (Pochmann e Amorim, 2003:198).
Mudou a Prefeitura? Analisem este artigo extraído do Jornal Força de Expressão de abril de 2003: “Família Feliciano afunda Sapé em Precatórios (...) A Família vem governando Sapé desde 1983, inicialmente com a primeira administração do atual prefeito, José Feliciano, que governou Sapé durante seis anos, passando o cargo para seu tio, José Feliciano Neto, que administrou o município por mais quatro, sendo eleita posteriormente, Maria de Fátima Gadelha Feliciano, esposa do atual prefeito, que teve seu mandato cassado por 9 meses, assumindo então seu cunhado, Roberto Flávio Malheiros Feliciano. A família então perdeu o poder para o médico João Carneiro Filho. Agora, de volta ao poder, a família mais uma vez tem José Feliciano Filho como prefeito(...)”.
Essa democradura imposta pela burguesia (oligárquica) do Brasil é analisada por Paulo Freire em Educação como Prática da Liberdade (1980:74), quando afirma que “Em verdade, o que caracterizou, desde o início a nossa formação, foi sem dúvida, o poder exarcebado. (...) Poder exacerbado a que foi se associando sempre submissão. (...) Esta foi, na verdade, a constante de toda nossa vida colonial. Sempre o homem esmagado pelo poder”.
Essa Sapé-colônia, de uns ditos poderosos, tem a fome como forma imperante de domínio e submissão, na manutenção da consciência ingênua (Freireana) do povo, mantendo como legítima (para eles) a dominação. Mas, este não é o momento de retomada do torpor... aprendemos a dialética, carregamos os olhos vivos de João Pedro, aprendemos o movimento das coisas, do ser. Um novo “Canudos” se aproxima, a liberdade está posta a quem quiser servi-la, através da ação concreta da luta (tão bem realizada pelas Ligas Camponesas). Segundo o Jornal Correio da Paraíba (24/05/03, A-5), o líder do Sem-Terra José Rainha afirmou que o “objetivo do movimento é formar um novo Canudos no Pontal do Parapanema.” Avaliamos, então, que a luta Sem-Terra extrapolou a reforma agrária, que assim como o Vietnã, devemos formar dez, cem, mil, Canudos, espalhados pelas diversas ‘colônias’ desse país.
O que nos anima? Pelo menos o paralelo temporal com a concretude das idéias de Paulo Freire. De que época falamos? Do Governo João Goulart (Lula), popular, do movimento das Ligas Camponesas (MST), da ação concreta, das 40 horas de Angicos/RN (3426 no ranking da exclusão social em 2000). E quais os conceitos de Educação Popular (extraídos de Educação como Prática da Liberdade)? Eis o que absorvemos:
1) Educação Popular é a consciência da população enquanto classe dos trabalhadores;
2) Educação Popular é o fazer da desobediência civil, é transcender da ‘democracia burguesa’;
3) Educação Popular é ser radical (e amoroso), é não acomodar-se;
4) Educação Popular é um sem-número de tarefas a cumprir;
5) Educação Popular é não deixar o povo silenciar;
6) Educação Popular é a educação da consciência da transitividade;
7) Educação Popular é a ingerência nos destinos da vida social;
8) Educação Popular são as bases da educação popular nelas e para elas (enquanto classe de trabalhadores);
E quais as condições concretas que temos para a realização das transformações sociais diante dos quadros de democradura, colônia, submissão, educação formal decadente, poder econômico da burguesia? Freire nos aponta alguns caminhos para a discussão, ao relatar: “A democracia que, antes de ser forma política, é forma de vida, se caracteriza sobretudo por forte dose de transitividade de consciência de comportamento do homem(/mulher). Transitividade que não nasce e nem se desenvolve a não ser dentro de certas condições em que o homem(/mulher) seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e dos problemas comuns. Em que o homem(/mulher) participe.” (1980:80)
João Pedro (que me emprestou seus olhos) mira agora na resistência popular dos povos oprimidos, olha para os índios no Equador e Bolívia, para os círculos bolivarianos na Venezuleza, para a resistência na Colômbia, para o Povo Palestino, enfim para o MST e sua campanha de formação de militantes, para a formação da insurgência popular (que pode ter o nome de novo Canudos).
E neste fim (que se configura enquanto começo) trazemos de volta Perfeição: “Venha, meu coração está com pressa, quando a esperança está dispersa, só a verdade me liberta, chega de maldade e opressão. Venha, o amor tem sempre a porta aberta e vem chegando a Primavera, nosso futuro recomeça, venha que o que vem é Perfeição”.

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