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24.7.14

Circular 1500

A namorada morava muito distante. Quase sempre pegava o último transporte público estatal (acreditem, um dia ele existiu), naquelas noites escuras de postes com as luzes queimadas.

Vencido pelo cansaço do dia e pelas horas intensas de namoro, fazia o trajeto de volta para casa dormindo. Impressionava como sempre acordava perto da parada de casa e nunca ultrapassava os limites do sono.

Dormia sentado, olhos cerrados, coluna ereta pois sabia que o encosto do banco da frente seria mais um circular pela cidade. E assim se chamava a lotação, Circular 1500.

Uma hora e tantos minutos de viagem, vários bairros, várias comunidades e muitas histórias. A mais trágica foi no dia que acordou assustado após ter sido acertado por um objeto estranho.

Ainda anestesiado conferiu a boca, os dentes, os olhos e sentiu uma lama escura e espessa espalhada no rosto. No chão, ao lado, um sapo cururu enorme, também desconfiado, não sabia como havia se transformado em artefato de guerra e alegria dos moleques de boa mira.

23.7.14

Doutor Honoris Lixus

Não vou arredar pé
Ficarei circunscrito a esse espaço
Provinciano
Limitado pelo desejo
E por minha falta de fé

"Não comerei da alface a verde pétala"
Nem provarei esse gosto amargo de fel
Não farei inscrições indevidas
Metade de mim não será consciência rala

Farei greve de fome
Tocarei fogo em meu corpo
Mutilações mil
Mas não serei mais um homem

Que enterrará seus princípios
Meios e fins
Com caminhos não justificados
Jogados em precipícios

Não vou abrir mão
Dos meus braços, antebraços
Pés de barro
Cabelos, unhas e corrimão

Quero minha ficha corrida
Parada de amolações
Dias claros, tardes quentes
E uma noite bem dormida

Não darei bandeira
Posso até ser confundido
Com aquele homem no lixo
Meu deus, que nojeira

Mas não serei ficha suja
No meio da imundície do pátio
Posso catar lixo, com o título na mão
Doutor honoris causa
Desta vida dita cuja

20.7.14

É fuzil?

Efusivo dilúvio tempestivo de um sistema gerador de sujeitos empertigados

É possível?
É fuzil alguma solução
Fusível
Neste mar vermelho
Plasmado por esta paz dos túmulos?

Por esta justiça que arrebanha gados
Açoitados para o abate
Como a primeira coluna, esquartejada, no dia D

Dia de todos os mortos
Das carnes repletas de bolor
Mofadas pelo ritual nefasto
E pelos gritos de horror

Sentimentos comprados a prazo
Consciências com cheques pré-datados
Taxas especulativas sobre o livre pensar
Aluguéis, pensões, ações em bolsas sem estética
Nessa éticapatética que nos leva a crer nos comentários vazios das noites de domingo

É fuzil? É violência a música que toca no rádio da polícia?
É fuzil? É verdade a saia justa do político na voz do Brasil?
É fuzil? Covardes adormecidos em berço esplêndido, da nossa pátria mãe gentil?
É fuzil? Neste oco da intelectualidade que navega em mar arredio?

É fuzil alguma solução?

15.7.14

Doação

Conduzido por La Poderosa (magrela, camelo ou simplesmente bicicleta) segui com uma bolsa pesada, cheia de livros, em direção ao IFPB (nenhuma ciclovia no percurso, só para constar).

Trouxe livros para doação, e já comecei a retirá-los da bolsa.

Não estamos aceitando doações, a biblioteca está cheia, disparou o servidor.

Boca aberta, catatonia vespertina, olhar marejado, silêncio.

Agradecemos [ponto]

(Deixei os livros na Coordenação do Curso de Licenciatura em Química, para o proveito de quem desejar, pelo menos lá pude doá-los)

[ponto]

9.7.14

Biblioteca

Desde ontem procuro uma biblioteca no centro da capital parahybana.

A biblioteca da Faculdade de Direito da UFPB foi desativada esta semana. O diretor da Academia do Comércio falou que a biblioteca só pode ser usada pelos alunos da instituição.

Na biblioteca do Ministério do Trabalho não pude ligar o computador, as tomadas só podem ser utilizadas pelos servidores. O servidor da Assembleia Legislativa não soube informar onde ficava a biblioteca.

Por último visitei a biblioteca pública do estado. Prédio histórico, convidativo e acolhedor, mas com as janelas abertas ao lado de uma rua movimentada, com as buzinas e arrancadas dos carros desviando a concentração. Quatro computadores para todo público e o wi-fi? "Não liberamos a senha, pois a internet é de apenas 3 giga", disse-me a servidora.

Pelo menos consegui ler o Jornal A União (único disponível) e doar alguns livros.

"Pode ser o país do futebol, mas não é com certeza o meu país".

Assalto em Alagoas

No dia 08 de junho de 2014 estava fazendo uma viagem de carro de Sergipe para a Paraíba. Em Alagoas fui parado pela Polícia Militar, numa daquelas fiscalizações corriqueiras.

Parei o carro, apresentei os documentos e aguardei o policial sem sair do veículo. Como de praxe o PM foi conferir os documentos com a placa traseira, retornou e me fez o convite para descer.

Este carro já sofreu alguma batida traseira? Perguntou. Sim, por duas vezes, respondi. Pois o lacre está rompido, asseverou. Apontei para o lacre branco da placa, intacto. O PM colocou a mão na parte interna da placa e pediu para que eu fizesse o mesmo. Está rompido aqui na parte traseira, vou ter que apreender seu documento e você terá cinco dias para retirá-lo em Maceió. Mas vamos ali conversar com o Coronel (?).

Qual a sua profissão? (fico imaginando o interesse na pergunta). Ainda não multei o senhor, saia do sol, venha pra cá. (Silêncio). O senhor quer me dizer alguma coisa? Não, respondi. (Silêncio). Fique à vontade senhor. (Silêncio). Olhe, o talão de multas está na pasta aqui na viatura, eu ainda não multei o senhor, fique à vontade. (Silêncio).

Fui em direção ao carro ver meu filho que dormia e suava bastante devido o calor das 15h. Fui chamado de volta. Constrangido e com o princípio peremptório de não macular essa ação sinistra, continuei em silêncio. (Mais silêncio).

O senhor quer me dizer alguma coisa? (Silêncio). Tudo bem senhor, aqui estão os seus documentos.

Dei as costas e ouvi o derradeiro recado em tom sarcástico: a multa vai chegar na sua residência.

Hoje, 09 de julho, recebo a notificação da "infração": conduzir o veículo com o lacre de identificação violado/falsificado. Classificação Gravíssima. 7 pontos.

6.7.14

Não mais que vinte

E faltam apenas vinte
Anos de solidão
Para poder cumprir qualquer tarefa
Qualquer meio de chão

Para poder fazer mais amigos
Desprezar qualquer quina
Ou milhão

Fiz as contas
Não mais que vinte
Futuro certo
Filho criado
Destino revide
Solo fértil
Da mãe gentil

Não mais que vinte
Anos de contemplação
Caberão quantos assaltos
Quantas ocupações
Quantos escritos
Saídos do forno
Bem quentinhos
Passados na manteiga
Na contramão

Não mais que vinte
Subir e descer
A antiga Palmeira
Passar no Cem Réis
Cortejar Livardo Alves
O busto de Augusto
O Caixa D'Água

Não mais que vinte
Não mais que pinte
Tinta guache em meio muro
Não preciso de mais