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18.12.13

Doutor

Eu não quero ser ninguém
Enquanto um outrem
Não souber nem assinar o nome

Eu não quero ser doutor
Enquanto houver submundo de dor
E crianças fora da creche sem pronome

Eu não quero ser burguês
Enquanto meio mundo é freguês
Da estação sem codinome

Eu não quero ser mais um pária
Nesse país sem pátria
Com essa angústia que me consome

Eu não quero ser isso ou aquilo
Taxado, vendido a quilo
Esquartejado, meu corpo some

Eu só quero ser a alegria
De uma noite tardia
De um coletivo que tudo come
[sem fome]

LP

Quero ouvir o Lado A
E depois o Lado B

Quero ouvir as teclas surrando o papel
Sem precisar corrigir meus erros de português

Quero de volta o Long Play
E a maletinha portátil

A agulha
E a fita

Não é nostalgia
É vida plena

Não descartável
Deserta de tecnologia

Sarau

Extra! Extra! Extra!

De costas para o palco as letras garrafais
Anunciam o que devemos comer
E quanto devemos pagar
Mesmo que o tempero esteja salgado e sujo

Debaixo do concreto a poesia abstrata
Faz surgir galhos libertários
Que brotam do asfalto denegrido

Sarau de Baixo anuncia em letras maiores
Que a poesia marginal vive
Ante as atrocidades mesquinhas dos sem poemas

16.12.13

Vitrola

Trocou a TV de plasma, presente indesejado de nãoseiquantaspolegadas, por uma vitrola que toca LP's antigos. Agora dorme ao som do Drummond recitando "Os ombros suportam o mundo", pois insuportável mesmo era o ruído do plim plim e congêneres.

12.12.13

Viu?

[Para Pedrão, a metralhadora poética]

Nós queremos celeridade
Sim, eu disse celeridade

Sei que essa justiça porca, anda lenta como tarturuga
Mas este rosto cheio de ruga
Não quer mais esperar um ano
Para que o suplente de deputado
Eleito com dinheiro vil
Dinheiro roubado do povo
Que até o juiz viu
Viu seu juiz, viu?

Suplente que virou deputado
Depois que um outro deputado comovido com tanto cascalho
Adoeceu para poder livrar o nobre salafrário
Da condenação do juiz que viu
Viu seu juiz, viu?

Condeno o réu a ressarcir integral os danos
Suspendo os direitos políticos por seis anos
E perda da função pública no momento da execução da sentença

Oh seu juiz, será que a gente não pensa?
O sujeito rouba o erário
Faz a gente de otário
Você diz que o sujeito é bandido culpado
E não pode fazer nada porque virou deputado?

Vamos esperar as férias do legislativo?
Quarenta dias de salário ativo
Dinheiro do povo para alimentar gatuno
E depois vamos esperar sentados
O momento que um outro juiz oportuno
Irá sentenciar mais uma vez o tratante
Sujeito de ação horripilante

E se o outro juiz não ver?
Mas o povo viu

E se prepare seu deputado réu
Mesmo sem cabelo e mesmo que não possa
Vamos tirá-lo a força
Dessa cadeira cheirando a fel

Zé da Penha

Vixe, hoje eu lembrei do menino Zé da Penha
Que vinha lá das cincos bocas de Mandacaru
Era daquele tipo, cheio da resenha
Jogava bola com a gente, entre o lixo e o urubu

Naquele campinho cheio de pedra vizinho a EMLUR
De um lado o cemitério, do outro a Zona Sul
Vinham todas as tribos, todos os meninos descalços,
Repletos de panos brancos, jogavam nos nossos encalços

José da Penha, era mais um menino sem bola
E jogava no nosso time de camisa sem gola
Sua mãe deveria trabalhar nas casas da vizinhança tonta
E a noite dançava no Pé de Ouro, depois da janta ficar pronta

Eu menino burguês, dono da bola, de escola, kichute e cartilha
Nada entendia como podia jogar tão bem quem não lia
Às vezes achava que aquilo tudo era uma ilha
E que no fundo tudo acabaria em poesia

Vixe era mais um Zé lá na Paraíba que parecia um nordestinado
Menino esperto, jogador de pé esfolado
Que vi muitas vezes esfomeado
Querendo engolir quem dissesse que tudo isso era predestinado