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17.7.23

Canção para um amigo a espera da cura

Eu sei que sigo o meu caminho

Enquanto você espera pela cura

Mas isso não quer dizer que deixei de emanar, diuturnamente, meus xamãs e orixás


Eu ateu, oro por ti todos os dias

Vibro orações e oxalás


Eu sei que enquanto você espera pela cura

Lê minhas digressões poéticas

E se pudesse ler minha mente

saberia que refaço nossos encontros todos os momentos


Enquanto você espera pela cura

Tiro as lições que aprendi contigo

Relembro o silêncio em sala de aula

Danço as músicas que você cantou

Navego pelos mares que gargalhamos

Escuto canções que você musicou


Enquanto você espera pela cura

Revejo choros e lances de xadrez


Amigos em comum aparecem a todo momento

como uma procissão em prece

Como um bom presságio

Nesta passagem chamada vida

Ar Dor

 Meu médico falou que devo parar de escrever

- Palavras tóxicas vão te matar;

Diz ele...

Mal sabe que escritos podem ser armas brancas

perfurocortantes


Inalações tóxicas são mais brandas que minhas ilações

Palavras mordazes mordem mais que ladram

Palavras malditas têm mais chumbo que as tintas de Portinari


Por isso, escrevo com ardor

Preciso bater metas, correr ligeiro

gerar dor

Cult

Sim, eu quero ser Cult

Andar a pé pela escadaria Selerón

Assistir Godard e fingir que tudo entendi


Mirar Monet, Picasso e Van Gogh

Passar horas com os Retirantes

Subir o Morro Dona Marta lendo a revista Vogue


Sim, eu quero ser Cult

Quero ler os livros da Biblioteca Nacional

E toda a coleção da National Geographic


Ouvir Bach, Bethoven e Villa-Lobos

Jogar xadrez nas horas vagas

E desafiar mágicos cubos


Quero ser Cult para poder desafiar o ignorante

Conhecer a História para não repetir o passado

Quero a ciência para poder compreender o mastodonte


Quero ser Cult para me armar até os dentes

Ter conhecimentos e listas

E lutar contra os fascistas

Sociedade dos poetas putos e mortos

 Leio escritores mortos

e saceio minha fome com a carne das escritoras (mortas)

Esbanjo-me com Sartre

Enamoro Clarice

Converso com Drummond


Rogo o dia da Cerimônia do Adeus


Minha carne entregue a jovens leitores

Agradecendo a sanha voraz do verme que me transformará em pó

Morcegos-consciência baterão à minha porta

E abrirei bem prazenteiro

(para passar o cozinheiro)


Estarei no céu nublado com os Anjos de Augusto

Na moral de Vinícius

Cortando lenha com o Machado de Assis


Não haverá mais ombros

Nem terei que suportar o mundo

Apenas eu passarinho

Voando livre pelo céu


Voltarei a ser Barro na casa de Seu Manoel

Irmão de Mário da velha Quintan(d)a


E uma flor de Lis (pector)

Será jogada junto com minhas cinzas

nos bailes da vida

Anunciando o (re)Nascimento de Milton e dos amigos do peito

Fausto

 "Todo este fausto

Me cheira a falso"

Tão falso quanto o amor que construiu este país


Amor de Índio (morto)

Amor de português posto

Amor bandeirante

que corre solto nas veias abertas

da minha América Latina


Tudo é tão falso quanto este amor que constrói este país


Vias abertas

Pulso que ainda pulsa

Miséria em toda parte

Poema de sete faces

Macabéia desvairada

Veias abertas


Tudo é tão falso quanto este ódio que destrói este país


Mentiras sinceras

Vertigens catatônicas

Seriados de TV

Metaverso que pulula

Tique toques com gim tônica


Tudo isso me cheira falso

Para muitos, parece fausto


* trecho retirado de Niketche uma história de poligamia de Paulina Chiziane (Companhia das Letras), além de várias citações de autores que amo.