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30.5.20

EU NÃO CONSIGO ACREDITAR...


Para George


Um emprego que se foi na pandemia

- eu não consigo respirar...

Um pai de família procurando comida

- eu não consigo respirar...

Uma nota de 20 dólares

- eu não consigo respirar...

Uma ligação para a polícia

- eu não consigo respirar...

Uma imobilização desmedida

- eu não consigo respirar...

Um homem pedindo pela mãe

- eu não consigo respirar...

A força bruta do extermínio da população negra

- eu não consigo respirar...

A pena de morte institucionalizada

- eu não consigo respirar...

Mais uma vida brutalmente ceifada

- eu não consigo acreditar.

22.5.20

Perguntas de uma criança de 9 anos


Pai, para que um prédio tão grande?
Porque a Justiça exagera...

Pai, por que aquele homem atirou em Lennon?
Porque a maldade existe...

Pai, e aquele cogumelo explosivo matou crianças?
Crianças, mulheres, homens, idosos e inocentes...

Pai, quem ganhou a Guerra Mundial?
Os soldados mortos perderam...

Pai, as pessoas moram naqueles barracos?
Sobrevivem...

Pai, é verdade que aquelas crianças não comeram hoje?
E nossa mesa está farta...

Pai, aqueles trabalhadores são explorados?
Todos os dias e de forma natural...

Pai, e aquelas roupas de Ghandi?
Representam a resistência...

Pai, tudo isso tem cura?
Só não há cura para a dor das minhas respostas...

Carta para Theo


Amado T.,

Parece-me que os desdobramentos dos meus atos ficarão marcados para sempre
A realidade enclausurada, as pernas encurtadas e a falta de sol indicam que,
mesmo com o retorno da normalidade, não conseguirei recompor o que foi perdido

Em resumo, mutilei uma orelha surda
Os girassóis murcharão no vaso amarelo
O ceifador continuará solitário e desconhecido
A bala teimará em não sair do meu corpo

Continuo assintomático com a venda de apenas um quadro em vida
Nem febre, nem dor, nem ganho
Tudo isso vai passar
Inclusive eu

Com amor,
V.G.

4.5.20

Fatos

Quando questionado pelo professor universitário perseguido e demitido
o presidente ditador respondeu:
Vá a merda!

Quando questionado sobre os mortos do vírus avassalador
o presidente saudoso dos generais respondeu:
E daí?

Quando perguntado sobre o povo
o presidente ditador respondeu:
Prefiro o cheiro dos cavalos

Quando perguntado sobre a vida do povo
o presidente saudoso dos generais respondeu:
Prefiro a economia

Cavalos, ditadores, generais, economia

Tudo isso cheira mal

Basta o povo apurar seu olfato

Cavalos, ditadores, generais, economia

Tudo isso cheira mal

Basta o povo não tolerar a distorção dos fatos

Imortais

A estante de livros desabou
Nem Sartre segurou
Nem Virginia Woolf evitou Newton

Imiscíveis, autores foram abaixo
Numa velocidade estonteante
Não restou livro sobre livro

Clarice assustada
Gabriel não teve tempo de reação
Drummond despertou de um longo sono

Imortais meus autores preferidos
vieram abaixo

Imorredouros safaram-se sem muitos traumas
Uma ou outra página amassada
Nada mais

Já recompostos, prontos para leitores ávidos