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19.1.06

“A bolsa ou a vida” e outros contos (de cem réis)

Gostaria de começar essas mal traçadas linhas por outro autor, que não o apontando no cabeçalho acima.
Estou na quinta tentativa de ler “A Paixão segundo G.H.” de Clarice Lispector. A dificuldade pode assentar na preocupação da autora no prefácio da obra: “Esse livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada...”. Imagine que desde os 16 anos que não consigo concluir o livro, talvez por começar sempre pelo prefácio e me ver diante da condição de alma formada, sugerida por Clarice. O que bem sei no momento é que já estou na página 89 (bem mais longe do que já fui). Talvez isso pode ser um indicativo de que o estado pueril que me dava conta esteja superado.
Mas o que chama atenção para o momento é a terceira perna. O livro começa com a angústia de G.H. ao perder sua terceira perna, “uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim uma tripé estável”. A personagem, e seu progresso narrativo, continua a afirmar que esse elemento que não mais existe (e que aparentemente é inútil, pois é possível andar com duas pernas) é essencial para o seu encontro, para sua organização, enfim para continuar vivendo.
Não sei exatamente o que uma alma bem formada pode definir como terceira perna, mas tenho por mim que o que me falta nesse momento é a minha liberdade – não que esse elemento seja útil ou necessário por completo para me fazer viver. É importante frisar também que o portador, ausente de liberdade, não se quer afirmar enquanto ser isolado, ao contrário, o conceito de liberdade parte do pressuposto do coletivo. E essa falta da terceira perna (contraditória por si mesma) é o conjunto da coerência e incoerência que me cerca nesse momento – e desde já me assumo enquanto incoerente para receber as devidas críticas, bem vindas de almas já formadas.
Me parece que minha liberdade tem um limite chamado bolsa. Não esse objeto feito por crônica de Drummond (quem dera), trato bolsa (financeira) essa que mais parece um osso corroído cheio de dentes a morder e que por vezes consegue inverter a lógica do raciocínio coletivo. Em primeiro lugar, a disputa não deve surgir no micro, pois as bolsas minguadas merecem uma análise de maior profundidade. Não podemos deixar de imaginar que tais bolsas já foram mais gordas e em maior número (havia bolsa até para especialização!), e que com o processo neoliberal do Estado mínimo não só as bolsas, como os empregos, o salário e a dignidade humana foram-se mais ainda. Se esse assunto “esquenta” o debate na pós-graduação, busquem vocês imaginar como anda a vida de 50 milhões de brasileiros que estão abaixo da linha da pobreza! Que tal se todos nós da Pós-Graduação (Educação Popular) estivéssemos alinhados com os desempregados de João Pessoa, com a mesma gana que estamos preocupados com as bolsas de estudos! Vamos acampar em Brasília e pedir ao Buarque que não cobre taxas dos universitários, que estabeleça condições dignas para a graduação, pós-graduação, para as creches, etc. Aproveitamos e invadimos o planalto, tomamos de assalto o poder e deixamos de pagar a dívida (milhões de dólares já pagos) e assim poderíamos garantir liberdade e cidadania para todo o povo!
Não deixemos que a bolsa vire moeda corrente, instrumento de coação, medo e atitudes de bajulação. A situação da bolsa está pior que exército de reserva, “se você não for um bom menino, Deus vai castigar”.
Marx, no Manifesto Comunista, trata sobre a relação do frio interesse monetário ao afirmar que: “(a burguesia) Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e, no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e duramente conquistadas, colocou a liberdade única, sem escrúpulos do comércio” (grifo nosso).
Assim, só posso acreditar em liberdade com atitudes tomadas na horizontal, não verticalizadas, discutidas no (e para o) coletivo. Esse ar impregnado merece ser baforado e transformado num debate ampliado, no coletivo, ideológico e não pessoal. Qual o projeto que fazemos parte? De que lado nós estamos? Essas perguntas devem estar bem claras ao discutimos as possibilidades históricas na luta em prol dos trabalhadores, ou dos nossos bolsos (e vaidade). Nesse caminhar quais as demandas imediatas? Restaurante Universitário, Residência Universitária, luta contra as taxas na Universidade (os alunos do CEFET estão pagando para fazer o mestrado), toda a população com acesso a educação básica e ensino superior, liberdade...
Pode parecer estranho (e alguns dirão coisas piores) esse discurso. Mas se me permitirem ao menos citar o Comandante Che, afirmarei: “quando o extraordinário se tornar cotidiano, fizemos a revolução”.
Indo mais além da água dessa fonte, procuro ajuda no educador russo Pistrak (analisado por Rossi), que debatendo sobre a estrutura de poder na escola, afirmou: “Não é raro ver-se representantes estudantis defendendo, nos órgão colegiados da administração escolar, não os interesses de seus pares e constituintes, os estudantes, mas os de uma administração que os cooptou mediante procedimentos diversos e nem sempre muitos morais que, nas famigeradas escolas particulares, chegam a envolver bolsas de estudo e outras vantagens concretas.”
Para quem entendeu a mensagem (e para quem a carapuça caiu – e aí já não é mais da minha ossada) fica a mensagem da terceira perna (liberdade, lembram?), que a discussão amiúde é interessante quando de fato existir um projeto popular de libertação nacional – não pela via eleitoral – uma libertação extraordinária, que venha dar a terceira perna a todo povo desse país.
Lauro Pires Xavier Neto

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