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21.12.05

O Sonho e a Meta

Dezoito horas. Na sala de jantar peguei a faca e comecei a cortar o pão com o intuito de recheá-lo de tomate e pepino, pois precisava realizar uma refeição leve, já que aquele seria o dia, depois de três meses ausente, de meu retorno aos gramados futebolísticos. O olhar, distante e reflexivo, apontava para tempos outros, relembrando os momentos áureos nos gramados colegiais onde sempre despontei como arqueiro de meta, ou simplesmente: goleiro. Nesta posição, passei metade da minha vida sendo, por muitas vezes, o culpado pelas derrotas e quase sempre esquecido nas vitórias e cumprindo invariavelmente a dolorosa tarefa de buscar a bola no fundo das redes. Acredito que o papel desempenhado pelo golquíper caracteriza o arquétipo do sujeito que escolheu essa posição: introspectivo, solitário, corajoso e sonhador, além de carregar consigo a difamante insígnia de péssimo jogador de linha.
Havia dado a última mordida no pão e resolvido, naquele instante, que desistiria da carreira de goleiro e partiria para a função de atacante e, assim, começaria uma nova vida, já que estava naquela cidade há apenas 90 dias e precisava, aos trinta anos, recomeçar minha história. Distraído, levei um susto ao chamado súbito de minha esposa: “- Pensador! Ó pensador!, desse jeito você vai se atrasar para o seu primeiro dia no campo de futebol.”
Corri para pegar a chuteira, o meião, a caneleira e, por um instante, refutei em levar comigo o bermudão acolchoado e o par de luvas. Pensei e resolvi levar apenas o primeiro, caso não conseguisse cumprir o desejo de atuar na linha. Sem fugir às características de um bom goleiro, resolvi não contar à companheira que iria me aventurar em outras veredas naquela noite. Dei tchau, recebi um beijo carinhoso e quando, já de costas, escutei o recadinho não convencional: “- Cuidado para não se machucar!”.
Dez para as sete cheguei ao campo de futebol, que, para mim, significava o regozijo pelo lazer tão escasso naquela cidade que eu ainda estava reconhecendo. Três meses de adaptação para que pudesse conseguir um espaço no time de futebol com pessoas que mal havia conhecido, mas futebol é isso: um lugar democrático e prazeroso quando encontramos um belo gramado e uma turma preocupada em se divertir – aquele era o lugar!
Minha primeira iniciativa foi contar quantos sujeitos de luvas e bermudões acolchoados encontravam-se aquecendo. Um..., dois, ... três, que prazer enorme encontrar os pares em quantidade suficiente para cumprir o desejo peremptório de atuar como atacante e finalmente inverter a lei de pegar as bolas no filó e marcar um fabuloso tento. Mas, fui logo questionado pela pessoa que começava a dividir os times: “- Joga em qual posição?”. Mal comecei a expressar o doce desejo de atacante e logo chega a subjeção: “- Dessa altura, com essa bermuda... hoje nós temos quatro goleiros. Espere para o próximo jogo”. Sentado e impávido de assumir a minha decisão, esperei intermináveis vinte minutos para a troca do terceiro goleiro, mais cinco minutos e chega o convite: “- Goleiro, entra aqui”. Respondi firmemente, sem titubear, apesar das insistências: “- Eu vim para jogar na linha”, desejo logo entendido pelo atacante de colete vermelho, que, já cansado, repassou-me a função tão desejada. Tinha a convicção de que ali não era minha praia e meu coração, a mil por hora, já denunciava isso.
No primeiro lance não consegui nem dominar a pelota. No segundo, fui derrubado perto do meio campo, contudo não me continha em realizar o sonho. Num lance inesperado, o zagueiro da outra equipe tentava dominar a bola frente ao seu goleiro, de maneira que não percebeu minha presença silenciosa a ponto de roubar-lhe a bola, restando-me girar o corpo e chutá-la indefensável. Mas, o inopinado aconteceu e a lembrança das palavras da amada tomou conta daquele gramado. O joelho, não acostumado com tamanho esforço, não resistiu àquela pressão e fez desabar em dor o metro e oitenta. “- Nada muito grave”, disse o médico e após dez sessões de fisioterapia e da natação, estava eu de volta ao campo do clube, mas naquela velha posição de goleiro – o sonho transformou-se em meta.
Frederico Linho

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