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13.3.19

A última sopa


Lambia copiosamente a panela transbordando com a sopa de ervilha. Mais uma vez, havia prestado atenção na receita antes do pior ter acontecido. Viu as batatas e cebolas cortadas sob a pia, observou a marca do óleo de oliva e as pitadas de sal. Sempre achou exagerado o tempo de cozimento e sempre resmungava que as proteínas poderiam se exaurir àquela temperatura. Mas, aquele caldo era único, um sabor que nunca encontrou nem mesmo nos melhores restaurantes. Por muitas vezes, tentou repetir a façanha e o máximo que se aproximava era com o verde daquele prato. Continuava a lamber cada gota da panela, pois sabia que era a última vez que sentiria aquele sabor, tomando cuidado para não pisar no corpo inerme que repousava no chão da cozinha. Num esforço hercúleo, tentava evitar que as lágrimas caíssem sobre a sopa e estragassem aquele sabor fenomenal. Por fim, esfregou os dedos na panela, descolou restos apurados que estavam pregados, e finalmente limpou todo o fundo e as laterais até encontrar o reflexo do seu próprio rosto. Nunca mais suas papilas sentiriam aquele sabor. Terminada a procissão gustativa, teria que iniciar o ritual de despedida. Ela se foi, inesperadamente, logo após passar a sopa no liquidificador e retorná-la à panela. Apenas um suspiro marcou a distância entre a dor e a morte – foi tudo muito rápido.

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