Aos
50 anos, 30 dedicados ao ofício de cabeleireiro, resolveu cursar a universidade
espelhado no exemplo dos filhos que, depois de muito sacrifício, conseguiram
virar “doutor”. Filho de pais agricultores, do interior do nordeste, concluir o
primário era uma grande conquista. Mas, os tempos mudaram e a exigência de ter
uma formação universitária é algo precípuo na pós-modernidade, mesmo que fosse
para colocar o diploma numa moldura, pendurá-lo na parede do Salão do Valdemar
e lustrá-lo todos os dias.
Ele
sabia que os ganhos com a formação universitária iriam além do brilho na
moldura do diploma. Sabia também que a sua posição honrada de cabeleireiro não
seria deposta após a conclusão de um curso superior na área de saúde. Adorava
dizer aquele nome completo: Joaquim José da Silva Xavier, era apaixonado pelos
livros que tinham o mártir da Inconfidência como protagonista, de comemorar seu
aniversário junto com o feriado nacional e estava realizando o sonho de ter a profissão
de Tiradentes.
A duras penas trabalhava o dia todo
no Salão e cursava a faculdade à noite. Já estava na metade do curso,
realizando estágios, abrindo bocas e planejando sorrisos de populares que
sentavam àquela cadeira branca tão temida. Durante aqueles semestres letivos teve
que reaprender a estudar, dominar as Tecnologias de Informação e Comunicação e
enfrentar as disciplinas à distância. As ferramentas digitais rodeavam o dia a
dia da faculdade de maneira bem diferente dos tempos de primário. Quando
criança, o máximo que possuía de tecnologia em casa era uma TV com imagens
preto e branco e dominava como ninguém a arte de sintonizar canais.
Comprou um computador e passou a
realizar os trabalhos das disciplinas do curso usando o que era de mais avançado,
de editores de texto a planilhas eletrônicas, além dos softwares que o ajudavam
a realizar as pesquisas acadêmicas. No começo sentia-se como o símio do Kubrick
com um osso na mão, descobrindo a ferramenta elementar do processo de evolução
do ser humano, afugentando os rivais e devorando um pedaço de carne pela
primeira vez na vida.
O grande desafio estava por vir. De
repente, seu vocabulário ficara mais rico com uma palavra indesejada: pandemia.
A quarentena forçada fez seu mundo desabar; nunca na vida havia fechado o Salão
por um dia sequer, era conhecido por todos do Ponto Cem Réis como o
cabeleireiro mais assíduo da região, condição sine qua non para auferir sua renda e criar os filhos.
Não tinha muito o que fazer, esperar
do governo um auxílio e enquanto isso viver da minguada poupança, dinheirinho
suado que conseguiu juntar ao longo de duros anos de trabalho e que já havia sobrevivido
ao ataque de um presidente destemperado. Sua cabeça estava voltada mesmo para
as aulas na faculdade, como seriam? O que iria acontecer com o curso a partir
daquele isolamento social?
De pronto bateu um desespero, os
planos de contingência elaborados pelos gestores da faculdade apontavam para
aulas remotas, síncronas, utilizando o Ambiente Virtual de Aprendizagem e
provas digitais. Para a juventude aquilo tudo estava à palma da mão, para ele
seria uma Odisseia, um desafio sem precedentes. Como fazer para continuar os
estudos naquela prisão sem grades, naquele confinamento que parecia não ter
fim?
As primeiras aulas geraram uma certa
desconfiança... será que realmente funcionaria ou seria um arremedo? Um certo
professor começara a aula afirmando que o sistema virtual era uma ferramenta
poderosa, outro compartilhou a tela com os slides, alguns rabiscavam a lousa
digital com tanta naturalidade e usavam vídeos oriundos das plataformas
digitais como se estivéssemos nas aulas presenciais. Até laboratórios digitais
apareceram em cena, garantindo que aquele tempo obscuro de pandemia seria suave
no tocante ao processo de ensino aprendizagem.
Já que todos estavam na mesma
trincheira, dava para imaginar a cena dos professores: casa com crianças,
rotina de lavar louça e o piso da casa, arrumar o espaço ideal para ministrar
as aulas síncronas, se adaptar ao processo de ensinar sentado numa cadeira, etc.
O que ficou mais patente foi o brilho nos olhos dos educadores, o entusiasmo
nos momentos de aula, os slides caprichosamente definidos e até a ousadia de
realizar um Kahoot durante uma
webconferência!
A Odisseia no espaço estava
completa, não mais com a cara do símio que aprendera a dialética do movimento
humano de forma tortuosa, mas com a pisada suave do Armstrong em solo lunar,
parafraseando a clássica frase: um pequeno passo para o homem, um grande salto
educacional.
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