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20.5.24

Vulnerabilidade

Somente quando fiz dezoito anos

É que entendi que o tempo é relativo

Depende da vulnerabilidade de cada um


Na casa da então namorada

o mês era medido pelo queijo coalho

Bem pesado, um quilo, um pouco mais

e a luta para durar o mês


Triste quando era de trinta e um dias

o sufoco era maior


Felicidade plena apenas uma vez por ano

mais um motivo para reverenciar o carnaval


Demorei muito para compreender a pobreza e seus desenganos

Assim como aquela família demorava para deglutir aquele queijo sem sal

17.3.24

Ogivas

A ogiva do senhor da guerra não parece uma vagina
Parece um pau ereto

Não tem clitóris, apenas glande

Não é simpático com a vida
Deseja a morte de todos

Símbolo fálico da vitória pírrica
A paz dos túmulos desejada

Putin, Biden e ogivas, não rimam com vaginas

Vinícius nos perdoe

Rosas não rimam com ogivas

O cravo de Hiroshima deveria ser a licença poética

12.2.24

Sentido

(para A.B.)


A vida não faz mais sentido

Não há mais encartes de LPs

comprados na Caverna Discos


Não há mais domingos na banca de revista

hábito comezinho que eu realizava com meu pai


A vida não faz mais sentido

Não recebo mais cartas

Nem frequento feiras de filatelia


Não encontro jornais impressos 

muito menos a crônica de F. Pereira da Nóbrega


A vida não faz mais sentido

Nunca mais datilografei um texto

e muito menos os tabloides publicaram a minha opinião


Não há mais escritos de Arthur Boka

apenas a crítica roedora dos ratos


A vida não faz mais sentido

A Caros Amigos acabou

só restou a Piauí

que de nordestina pouco tem


Não há mais como colecionar cartões

 telefônicos

Muito menos fichas DDD


Entrego meus sentidos a essa falta de sentido...

11.2.24

Morte e vida do poema

Poevida

             Poemeu

                          Poeteu

                                     Poenosso

                                               Poemorto

Poemorto (2)

Quando eu morrer, por favor

Preservem a cama que eu dormia

Deixem os óculos em cima da escrivaninha

Indiquem aos turistas fazer visitas à luz do dia


Quando eu morrer, por favor

Empalhem os animas de minha idolatria

Exponham todas as minhas alvissarias

Mostrem todos os caminhos de onde eu vinha


E não esqueçam de apagar os poemas do tempo da infancia

Manifesto 150tão

Já sinto o peso do tempo

Pesa mais que mil elefantes

Porém, é mais leve

que os corações valentes


Por isso, comemoro o sesquicentenário

Vivi três vezes mais que mereci

Vesti camisa de revolucionário

Nunca orei em sinagogas

Agora tenho a cara de otário


Perdi amigos, sofri e chorei

Por isso, comemoro o sesquicentenário

É muita história para contar

Muitos poemas que servem para limpar pratos 

Muita música para cantar apenas o relicário


Foram tantos planos

tantas agendas preenchidas

Por isso, comemoro o sesquicentenário

Minha cara de maracujá

Não permite comemorar o cinquentenário


Estou saciado, comi a vida e lambi as beiras

Por isso, aos cinquenta comemoro o sesquicentenário

Sinto-me completo, cheio de ar

Apesar de sentir falta de um ovário

Painho 85


¹⁶ ⁰¹ ¹⁹³⁹ —


A sexualidade sempre esteve presente na vida do meu pai.


Quando perguntado qual atividade física realizava, sempre respondia:


- sexo, três vezes por semana;


Quando perguntado como gostaria de morrer, sempre respondia:


- durante a relação sexual;


Infelizmente ele não conseguirá realizar tamanho desejo.


Serei mais objetivo no meu leito de morte:


- desejo morrer recitando, apenas, poemas.

Poemorto




Estive em Curitiba,

              mas não vi o Leminski

Nem vivo, nem morto

              apenas fachada

Parece que Curitiba

              não tem poeta, nem porto

8.1.24

Corpos nus

 Corpos nus


Eu não quero teu seio

Não quero tua bunda

Não quero (teu) sexo


Eu só quero nossos corpos nus na beira da cama


Quero brochar infinitamente 

para poder desabrochar todo o sentimento que escorre do meu talo (flácido)


Ao som de super-homem

(a canção)

Minha porção, desabrocha

(G)calada então, ficaria assim temerosa


Ao fim da cerimônia de acertos

Gozaríamos em uníssono

Ao som da sinfonia estelar

Corpos nus

Numa noite, assexuada, de sono

17.7.23

Canção para um amigo a espera da cura

Eu sei que sigo o meu caminho

Enquanto você espera pela cura

Mas isso não quer dizer que deixei de emanar, diuturnamente, meus xamãs e orixás


Eu ateu, oro por ti todos os dias

Vibro orações e oxalás


Eu sei que enquanto você espera pela cura

Lê minhas digressões poéticas

E se pudesse ler minha mente

saberia que refaço nossos encontros todos os momentos


Enquanto você espera pela cura

Tiro as lições que aprendi contigo

Relembro o silêncio em sala de aula

Danço as músicas que você cantou

Navego pelos mares que gargalhamos

Escuto canções que você musicou


Enquanto você espera pela cura

Revejo choros e lances de xadrez


Amigos em comum aparecem a todo momento

como uma procissão em prece

Como um bom presságio

Nesta passagem chamada vida

Ar Dor

 Meu médico falou que devo parar de escrever

- Palavras tóxicas vão te matar;

Diz ele...

Mal sabe que escritos podem ser armas brancas

perfurocortantes


Inalações tóxicas são mais brandas que minhas ilações

Palavras mordazes mordem mais que ladram

Palavras malditas têm mais chumbo que as tintas de Portinari


Por isso, escrevo com ardor

Preciso bater metas, correr ligeiro

gerar dor

Cult

Sim, eu quero ser Cult

Andar a pé pela escadaria Selerón

Assistir Godard e fingir que tudo entendi


Mirar Monet, Picasso e Van Gogh

Passar horas com os Retirantes

Subir o Morro Dona Marta lendo a revista Vogue


Sim, eu quero ser Cult

Quero ler os livros da Biblioteca Nacional

E toda a coleção da National Geographic


Ouvir Bach, Bethoven e Villa-Lobos

Jogar xadrez nas horas vagas

E desafiar mágicos cubos


Quero ser Cult para poder desafiar o ignorante

Conhecer a História para não repetir o passado

Quero a ciência para poder compreender o mastodonte


Quero ser Cult para me armar até os dentes

Ter conhecimentos e listas

E lutar contra os fascistas

Sociedade dos poetas putos e mortos

 Leio escritores mortos

e saceio minha fome com a carne das escritoras (mortas)

Esbanjo-me com Sartre

Enamoro Clarice

Converso com Drummond


Rogo o dia da Cerimônia do Adeus


Minha carne entregue a jovens leitores

Agradecendo a sanha voraz do verme que me transformará em pó

Morcegos-consciência baterão à minha porta

E abrirei bem prazenteiro

(para passar o cozinheiro)


Estarei no céu nublado com os Anjos de Augusto

Na moral de Vinícius

Cortando lenha com o Machado de Assis


Não haverá mais ombros

Nem terei que suportar o mundo

Apenas eu passarinho

Voando livre pelo céu


Voltarei a ser Barro na casa de Seu Manoel

Irmão de Mário da velha Quintan(d)a


E uma flor de Lis (pector)

Será jogada junto com minhas cinzas

nos bailes da vida

Anunciando o (re)Nascimento de Milton e dos amigos do peito

Fausto

 "Todo este fausto

Me cheira a falso"

Tão falso quanto o amor que construiu este país


Amor de Índio (morto)

Amor de português posto

Amor bandeirante

que corre solto nas veias abertas

da minha América Latina


Tudo é tão falso quanto este amor que constrói este país


Vias abertas

Pulso que ainda pulsa

Miséria em toda parte

Poema de sete faces

Macabéia desvairada

Veias abertas


Tudo é tão falso quanto este ódio que destrói este país


Mentiras sinceras

Vertigens catatônicas

Seriados de TV

Metaverso que pulula

Tique toques com gim tônica


Tudo isso me cheira falso

Para muitos, parece fausto


* trecho retirado de Niketche uma história de poligamia de Paulina Chiziane (Companhia das Letras), além de várias citações de autores que amo.

12.5.23

Cincoenta

Cheguei aos cinquenta

Com muitos cacoetes

E pouca massa cinzenta


É meu tempo de brigar com a geração vindoura

De estar no paredão de fuzilamento

De achar a vida dura


Narrativas, relações tóxicas, masculinidade

comunistas enclausurados


Serão coisas da idade?


Graças a Marx,

continuo vivo

Anacrônico

ma(i)s vivo...