Páginas

4.5.20

Fatos

Quando questionado pelo professor universitário perseguido e demitido
o presidente ditador respondeu:
Vá a merda!

Quando questionado sobre os mortos do vírus avassalador
o presidente saudoso dos generais respondeu:
E daí?

Quando perguntado sobre o povo
o presidente ditador respondeu:
Prefiro o cheiro dos cavalos

Quando perguntado sobre a vida do povo
o presidente saudoso dos generais respondeu:
Prefiro a economia

Cavalos, ditadores, generais, economia

Tudo isso cheira mal

Basta o povo apurar seu olfato

Cavalos, ditadores, generais, economia

Tudo isso cheira mal

Basta o povo não tolerar a distorção dos fatos

Imortais

A estante de livros desabou
Nem Sartre segurou
Nem Virginia Woolf evitou Newton

Imiscíveis, autores foram abaixo
Numa velocidade estonteante
Não restou livro sobre livro

Clarice assustada
Gabriel não teve tempo de reação
Drummond despertou de um longo sono

Imortais meus autores preferidos
vieram abaixo

Imorredouros safaram-se sem muitos traumas
Uma ou outra página amassada
Nada mais

Já recompostos, prontos para leitores ávidos


30.4.20

2020: Uma Odisseia no espaço educacional



             Aos 50 anos, 30 dedicados ao ofício de cabeleireiro, resolveu cursar a universidade espelhado no exemplo dos filhos que, depois de muito sacrifício, conseguiram virar “doutor”. Filho de pais agricultores, do interior do nordeste, concluir o primário era uma grande conquista. Mas, os tempos mudaram e a exigência de ter uma formação universitária é algo precípuo na pós-modernidade, mesmo que fosse para colocar o diploma numa moldura, pendurá-lo na parede do Salão do Valdemar e lustrá-lo todos os dias.

Ele sabia que os ganhos com a formação universitária iriam além do brilho na moldura do diploma. Sabia também que a sua posição honrada de cabeleireiro não seria deposta após a conclusão de um curso superior na área de saúde. Adorava dizer aquele nome completo: Joaquim José da Silva Xavier, era apaixonado pelos livros que tinham o mártir da Inconfidência como protagonista, de comemorar seu aniversário junto com o feriado nacional e estava realizando o sonho de ter a profissão de Tiradentes.

            A duras penas trabalhava o dia todo no Salão e cursava a faculdade à noite. Já estava na metade do curso, realizando estágios, abrindo bocas e planejando sorrisos de populares que sentavam àquela cadeira branca tão temida. Durante aqueles semestres letivos teve que reaprender a estudar, dominar as Tecnologias de Informação e Comunicação e enfrentar as disciplinas à distância. As ferramentas digitais rodeavam o dia a dia da faculdade de maneira bem diferente dos tempos de primário. Quando criança, o máximo que possuía de tecnologia em casa era uma TV com imagens preto e branco e dominava como ninguém a arte de sintonizar canais.

            Comprou um computador e passou a realizar os trabalhos das disciplinas do curso usando o que era de mais avançado, de editores de texto a planilhas eletrônicas, além dos softwares que o ajudavam a realizar as pesquisas acadêmicas. No começo sentia-se como o símio do Kubrick com um osso na mão, descobrindo a ferramenta elementar do processo de evolução do ser humano, afugentando os rivais e devorando um pedaço de carne pela primeira vez na vida.

            O grande desafio estava por vir. De repente, seu vocabulário ficara mais rico com uma palavra indesejada: pandemia. A quarentena forçada fez seu mundo desabar; nunca na vida havia fechado o Salão por um dia sequer, era conhecido por todos do Ponto Cem Réis como o cabeleireiro mais assíduo da região, condição sine qua non para auferir sua renda e criar os filhos.

            Não tinha muito o que fazer, esperar do governo um auxílio e enquanto isso viver da minguada poupança, dinheirinho suado que conseguiu juntar ao longo de duros anos de trabalho e que já havia sobrevivido ao ataque de um presidente destemperado. Sua cabeça estava voltada mesmo para as aulas na faculdade, como seriam? O que iria acontecer com o curso a partir daquele isolamento social?

            De pronto bateu um desespero, os planos de contingência elaborados pelos gestores da faculdade apontavam para aulas remotas, síncronas, utilizando o Ambiente Virtual de Aprendizagem e provas digitais. Para a juventude aquilo tudo estava à palma da mão, para ele seria uma Odisseia, um desafio sem precedentes. Como fazer para continuar os estudos naquela prisão sem grades, naquele confinamento que parecia não ter fim?

            As primeiras aulas geraram uma certa desconfiança... será que realmente funcionaria ou seria um arremedo? Um certo professor começara a aula afirmando que o sistema virtual era uma ferramenta poderosa, outro compartilhou a tela com os slides, alguns rabiscavam a lousa digital com tanta naturalidade e usavam vídeos oriundos das plataformas digitais como se estivéssemos nas aulas presenciais. Até laboratórios digitais apareceram em cena, garantindo que aquele tempo obscuro de pandemia seria suave no tocante ao processo de ensino aprendizagem.

            Já que todos estavam na mesma trincheira, dava para imaginar a cena dos professores: casa com crianças, rotina de lavar louça e o piso da casa, arrumar o espaço ideal para ministrar as aulas síncronas, se adaptar ao processo de ensinar sentado numa cadeira, etc. O que ficou mais patente foi o brilho nos olhos dos educadores, o entusiasmo nos momentos de aula, os slides caprichosamente definidos e até a ousadia de realizar um Kahoot durante uma webconferência!

            A Odisseia no espaço estava completa, não mais com a cara do símio que aprendera a dialética do movimento humano de forma tortuosa, mas com a pisada suave do Armstrong em solo lunar, parafraseando a clássica frase: um pequeno passo para o homem, um grande salto educacional.

26.4.20

Bêbado

Nunca havia estado tão bêbado
Tão confuso das ideias
Estado de euforia
De choro
De medo
De alegria
De tristeza

Bebeu pelos sonhos quebrados
Pelas asas queimadas
Do Ícaro vencido

Bebeu pela vida
Pela morte
Pela esperança tão escassa

Bebeu a garrafa vazia
De alma lavada

Estava tão bêbado da fermentação política
Da ebulição dos fatos
Da erupção onírica
Que vagou sozinho pelos corredores da casa
Sem conseguir encontrar a si mesmo

16.4.20

Os ombros do mundo

Hoje aos 46
Lembrei de meu pai
Com os ombros em cima da mesa
Numa madrugada fria de 1986

Pensava na vida?
Na inflação do Sarney?
No imposto de renda?
Ou em outras mulheres?
Nunca sei
Nunca saberei

Ombros em cima da mesa
Não suportavam o mundo
Suportavam a cabeça escorada
E o peso daquele silêncio sombrio

Hoje, meu pai
Aos 46 do segundo tempo
Ainda consigo ver teus olhos
Mas teus ombros não carregam mais a dor do mundo

O mundo está escorado
Esperando que alguém acorde de madrugada
E sinta seu suspiro ofegante
Como quem pedindo socorro
Como quem pedindo um afago

15.1.20

Ex

sou um ex poeta puto
ex poente

agora sou nascente
mais experiente
ou sol nascente
pronto para que você me experimente

sou meu expurgo
ex puto

sou todo ex
sou exílio
ex idílio

ex amor
ex lágrima
ex vida

ex em tudo
exasperado
temperado em aço
ex mudo

ex mundo
sujismundo
tudo ex
em tudo

4.10.19

um único ontem com a Janis

eu e minhas manias de amores impossíveis
amores que deveriam ser
apenas pedidos de autógrafo

nem falo em idade
ou em morte

acredito piamente em amores impossíveis
Clarice, Janis
amores impossíveis e bigamias

amores pegajosos
ciumentos
impossíveis

tão impossível que agora tenho ciúmes
de Bobby Mcgee

tão impossível que eu também quero trocar
todos os meus amanhãs
por um único ontem com a Janis

17.9.19

Poente

Pássaros livres
brincam de voar
brincam de dar rasantes
brincam de liberdade no ar

sabem aproveitar o deleite da vida
ensinam que o mundo é belo
que o tempo é curto

e que é preciso, mais que nunca
voar

22.4.19

A cor do silêncio

Silêncio, qual a sua cor?

 luto enegrecido
                             ou amarelo agradecido?

será azul turquesa
                                 ou marrom beleza?

Silêncio, qual a sua cor?

não me diga nada
apenas mostre o seu tom

Silêncio, qual a sua cor?

será um roxo dolorido
                                       ou um tom colorido?

Silêncio, qual a sua cor?

Será uma cor de dor?
                                    de amor
                                                   ou de torpor?

por mais que eu insista
não há nenhuma pista

só o silêncio como resposta

27.3.19

Piso Salarial do Magistério


Vi na página da Câmara Federal, no dia 26 de março, a realização da sessão alusiva ao Dia Nacional do Piso Salarial dos Professores. Tomado como um grande avanço para o magistério, os professores não têm muito a comemorar. Primeiro, porque a Lei do Piso do Magistério estabelece como referência inicial o salário dos professores que têm a Formação Normal (Magistério de nível médio) e não estipulou uma porcentagem de aumento salarial para graduados, especialistas, mestres e doutores. Tal valor da progressão ficou ao sabor das leis municipais que quase sempre não são favoráveis ao magistério. Segundo, a Lei do Piso acabou virando a Lei do Subsolo, pois estabeleceu uma carga horária de referência de 40 horas de trabalho e os gestores municipais e estaduais acabam por fazer uma regra de três para carga horárias abaixo de 40 horas, rebaixando ainda mais o valor do Piso.

Tomo dois casos recentes, de duas prefeituras do Estado da Paraíba que realizam concurso em 2019, para mostrar essa dura realidade. A prefeitura de Lucena oferece um salário bruto de R$ 1.835,37 (26 horas) e a Prefeitura do Conde, com a oferta de salário de R$ 1.607,96 (25 horas). O piso salarial do magistério foi reajustado para R$ 2.557,74, em 1º de janeiro de 2019, portanto o valor pago pelas prefeituras é bem inferior a este valor. O salário dos professores da Educação Infantil da Prefeitura de Lucena é ainda mais perverso: R$ 1.595,98.

Com esta realidade, não há o que comemorar!

https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/EDUCACAO-E-CULTURA/574092-CAMARA-COMEMORA-DIA-NACIONAL-DO-PISO-SALARIAL-DOS-PROFESSORES.html

13.3.19

A última sopa


Lambia copiosamente a panela transbordando com a sopa de ervilha. Mais uma vez, havia prestado atenção na receita antes do pior ter acontecido. Viu as batatas e cebolas cortadas sob a pia, observou a marca do óleo de oliva e as pitadas de sal. Sempre achou exagerado o tempo de cozimento e sempre resmungava que as proteínas poderiam se exaurir àquela temperatura. Mas, aquele caldo era único, um sabor que nunca encontrou nem mesmo nos melhores restaurantes. Por muitas vezes, tentou repetir a façanha e o máximo que se aproximava era com o verde daquele prato. Continuava a lamber cada gota da panela, pois sabia que era a última vez que sentiria aquele sabor, tomando cuidado para não pisar no corpo inerme que repousava no chão da cozinha. Num esforço hercúleo, tentava evitar que as lágrimas caíssem sobre a sopa e estragassem aquele sabor fenomenal. Por fim, esfregou os dedos na panela, descolou restos apurados que estavam pregados, e finalmente limpou todo o fundo e as laterais até encontrar o reflexo do seu próprio rosto. Nunca mais suas papilas sentiriam aquele sabor. Terminada a procissão gustativa, teria que iniciar o ritual de despedida. Ela se foi, inesperadamente, logo após passar a sopa no liquidificador e retorná-la à panela. Apenas um suspiro marcou a distância entre a dor e a morte – foi tudo muito rápido.

8.3.19

Necrotério

nunca mais visitei o túmulo dos poemas-mortos
nunca mais joguei cinzas ao vento
nunca mais uma banda de rock musicou meus escritos decadentes

nessa terra de gigantes
nunca mais a juventude foi uma propaganda de refrigerantes
nessa terra de gigantes
olho por olho dente por dente

nunca mais orei por meus poemas-mortos
e aqui jaz um poema delirante

Poemorto

Lamento informar que, na madrugada deste domingo, faleceu Poema S.A. de Falência Múltipla das Rimas em decorrência da Síndrome da Imunodeficiência de Versos Não-Adquiridos. O velório acontece na Academia dos Poemas Mortos.

14.1.19

poemas à espera de notas musicais

escrevo poemas para que eles ganhem o mundo
como filhos criados soltos

alguns nascem vibrantes
outros natimortos

alguns nascem como se o cordão umbilical
estivesse preso à garganta
outros suspiram intensamente

alguns são de parto normal
outros arrancados à fórceps

muitos deles berram
outros gemem

alguns suplicam
outros são mera súplica

alguns são poemas adestrados
outros revoltos

alguns mamulengos
outros miseráveis

mas, o que todos desejam
é poder viralizar em notas musicais
como os haicais
do Leminski

toda mentira é verdade

tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
minto
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéoquesinto
minto
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéomeugrito
minto
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéogemido
minto
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoévaidade
minto
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoéverdade
tudooqueeuescrevoétempestade
minto
todamentiraviraverdade
todamentiraviraverdade
todamentiraviraverdade
todamentiraviraverdade
todamentiraėverdade
minto

19.12.18

Patrão


Patrão
Frederico Linho
(para Bituca)

Não quero dormir esta noite
Não quero acordar e ver a cara do meu patrão
Prefiro o sono dos justos
E sonhar com a liberdade como um clarão

Não quero ouvir um boçal dizer
Que é duro ser patrão neste país
Quero acordar tarde
E viver este sonho por um triz

Quero dormir e sonhar com a liberdade
“Quero os meninos e o povo no poder”
Quero que digam que não tenho idade
Que meus sonhos são pueris

Quero acordar agora mesmo, dessa realidade infeliz
Quero casa, pão, solidariedade
Vou escrever essas palavras por todo o chão
Quero ver brotar esse sonho, como planta e raiz

7.12.18

Guernica Retirante

sou todo Guernica
uma guerra civil em ebulição
sou pedaços de gente
espalhados pelo chão

sou todo Os Retirantes
a seca que assola minha compaixão
sou o menino esquálido
que mendiga por um pão

sou Picasso, Portinari
sou uma tela encravada
no interior de uma gestação

sou o germe que alumia
sou a boca escarrada
sou o sentimento do mundo

sou essas duas telas
uma barriga d'água
uma bomba que silencia
a indústria da seca que mata

sou cinzento
meio ocre
agridoce
e ser nada disso
é o que me resta
[ser]

6.12.18

Assassinado

Eu quero morrer assassinado
dois tiros no meio do peito
eu quero morrer assassinado
quero manter esse doce legado

John Che Lennon Guevara

quero minha cova rasa
a cova de Conselheiro

eu quero morrer assassinado
quero fazer parte de um crime com cheiro de chorume

quero que seja a mando de um juiz
e que o crime continue impune

Marielle Luther Franco King

eu quero morrer assassinado
pelas intempéries dessa vida
quero provar o sabor de uma escopeta
ao molho sugo do meu peito

Salvador Mahatma Allende Gandhi

não me salve desse escrutínio
quero ouvir na voz do Brasil
o elogio ao meu algoz
alguém fanático dizer que ele foi brilhante

bang bang

não quero que a história seja assassinada
ela tem que estar viva
para contar os crimes contra mim
e contra a humanidade

4.11.18

Silêncio

Adoro o silêncio
Preciso do silêncio preciso
Do grito de Munch

Preciso do silêncio
Para me reinventar

O silêncio do sono
Do pensamento
O silêncio das cores

Preciso do silêncio desbotado
Do tempo espaço entre as notas musicais

Preciso do silêncio vivo
Pulsante
Ofegante

Para continuar vivo,
preciso do silêncio do leito de morte

15.10.18

Dia dos Professores


15 de outubro: Dia dos Professores/as
Nós educadores/as não temos o que comemorar

As precárias condições de trabalho, os baixos salários e a desvalorização da profissão são fatores que indicam que temos muita luta pela frente.

Para piorar este cenário, o candidato da extrema direita afirma, em seu programa de governo, que irá "extirpar a ideologia de Paulo Freire das escolas", desrespeitando a nossa autonomia intelectual e pedagógica, a pluralidade de ideias e agredindo a memória de um dos maiores educadores do mundo.

O candidato da extrema direita afirma ainda em seu programa que não haverá recursos novos para educação e não trata do financiamento da área com transparência. Seu programa não propõe nada para o FUNDEB. Dessa forma, deixa claro a política do estado mínimo e que traz consequências nefastas para a maioria da população que precisa da educação pública, seja na educação básica, seja no ensino superior.

O economista do candidato da extrema direita, afirmou em entrevista que irá cobrar taxas nas universidades públicas e irá instituir o sistema de “vouchers” na educação, copiando um modelo fracassado e que dilapida a educação pública. Afirma que irá vender todo o nosso patrimônio (PETROBRAS, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica etc) para pagar a Dívida Pública, ao invés de propor uma auditoria conforme prevê a Constituição.

Como se não bastasse, o candidato da extrema direita, defende o bisonho projeto Escola sem Partido, que nada mais é do que o cerceamento do trabalho pedagógico sob o viés ideológico da direita, ou seja, o projeto é partidário de ideias reacionárias que devem ser implantadas, de maneira autoritária, no âmbito escolar.

Dessa forma, neste momento tão difícil da política nacional, conclamamos todos/as os/as trabalhadores/as em educação a continuar estabelecendo diálogo com a classe trabalhadora no sentido de alerta-la dos perigos desses projetos para a nossa democracia.

Por mais recursos para a educação! Pela liberdade pedagógica!
Pela autonomia intelectual! Contra o Projeto Escola sem partido!
Paulo Freire presente!
#elenão #elenunca

11.9.18

Sou

Sou um maníaco compulsivo
Sou um depressivo regressivo
Leio Doutor Freud em revistas
de banca de jornal
E continuo incisivo

Sou puro fetiche
Anarco punk de merda
Leio jornal todo dia

enquanto crianças mal sabem
o bêabá

Minha vaidade é areia movediça
A renda per capita do meu país
É uma vergonha
E toda sanha pelo topo da carreira
É como escabiose em pele de meninos

5.9.18

Pleno cansaço

Pleno cansaço
entre as labaredas escassas
e o frio tenebroso dos meus braços

Pleno cansaço
entre a labuta diária
e o fracasso anunciado do cangaço

Pleno cansaço
entre a forragem sutil do meu leito
e o sono temperado à aço

Descanso ante o descaso
perante crianças que mal conseguem
contar um caso

Descanso no meu pleno cansaço
canso resoluto... descanso
descubro que sou apenas um pedaço

Sou metade, sou o terço, a quinta parte
não sou nada
não valho um quilate

Sou apenas meu pleno cansaço

17.8.18

Alfabetização

Estou de volta à escola pública.

Depois de ter sido expurgado, arrancado da sala de aula da escola pública de maneira abrupta, resolvi fazer Pedagogia e fui aprovado, através de uma seleção, para a função de Assistente de Alfabetização do Programa Mais Alfabetização.

Vou atuar como bolsista voluntário em três turmas do 1o e 2o ano do ensino fundamental numa escola estadual da capital paraibana (bolsa de R$ 150,00/mês por turma).

Com 22 anos de magistério, acredito que este vai ser um dos maiores desafios da minha carreira.

Já estive na escola e estou de posse dos dados da avaliação inicial que foi aplicada aos alunos.

Foram 20 questões de Português e 20 de Matemática. A maioria dos alunos não conseguiu acertar metade da prova.

Sei que são indicadores quantitativos e que não representam a realidade. Mas, ao aplicar a mesma prova com meu filho que está cursando o 2o ano, ele conseguiu acertar todas as questões de uma prova sem muita complexidade.

O desafio está lançado. Espero dar conta da função, pois terei que acumular esta tarefa com o trabalho, a família e o último semestre do curso de pedagogia.

6.7.18

eu só queria

eu só queria um soco menos violento
um ódio menos escaldante
uma letra menos escarlate

eu só queria dormir na paz do mundo
acordar sem a ressaca da noite
sentir o cheiro rosa choque e violeta

eu só queria amanhecer nu no teu compasso
cruzar a esquina nos teus braços
olhar as estrelas e o espaço

eu só queria que o sentimento do mundo
explodisse no meu peito
e que a nave mãe pousasse sem sobressaltos

eu só queria que este querer doméstico
fosse o prumo da concórdia
fosse o rito sumário
o grito que escapou do armário

eu só queria me deitar com o mundo
ouvir músicas melosas
e acordar com o raiar do dia
em prantos

eu só queria que esse canto choro
inundasse os compartimentos
desnudasse a nossa vergonha
fosse o samba enredo de todos os carnavais

eu só queria que essa letra torta
fosse infinita
mistura dramática de todos os tons
que eu pudesse pintar o sete

que os jornais amanhecessem em branco
e cada um pudesse escrever a sua própria manchete

17.5.18

Acarajé já!

Eu quero comer um acarajé sem culpa
Mais que lipídios
Quero degustar desse prazer
Sem precisar ser um privilégio

Quero comer um acarajé
Quando todos os meninos estiverem
no colégio

Não vou pedir abará
Quero calorias
Amor sem sacrilégio
Discurso sem ódio
Pátria amada Bahia

Entre bolos, bolsos e cia
Quero uma acarajé com sotaque
Sem meio termo
Mais à esquerda
Quente e calórico

Vermelho no sangue

Não me venha com abará
Quero com todas as forças
Em 2018
Acarajé já!

30.3.18

Vida e morte


Aqui não neva
Apenas a poeira fina embaça meus olhos
Aqui ninguém viu a vida
Apenas as pessoas vivem em embrulhos

Cobrem o frio, a fome, o ódio

Nunca neva
Sempre frio

Nunca neva
Sempre fome

Nunca neva
Sempre ódio

Apenas pessoas
Nunca vida

Sempre fome
Nunca trem, ônibus ou chorume

Sempre choro

31.1.18

dú(vidas)

Tenho medo de estar enquadrado
De ser um quadrado
imóvel

Tenho medo da geração comida rápida
De fazer parte da estatística dos que não lêem
Neste país sem livrarias

Tenho medo de Deus e dos meus pecados
E tenho apenas um sentimento esquálido

Deus me livre dessas regalias
Dos anéis de ouro e prata
Dos bordéis e dos casacos

Quero partir nu
Rumo ao infinito
Sem sombra e sem dú(vidas)

13.12.17

Sentimentos

Tenho uma calça com bolsos furados
E sentimentos vazados
Por todos os lados

3.11.17

Rumo à Estação Futuro

Agora conto o tempo através da tua história
Não uso mais relógio ou calendário
O tempo agora é o meu mistério

Vejo o tempo passar no meu redário
Não meço mais o futuro
Apenas fotos e o balançar das redes

Não conto quantos contos faltam
Pra acabar essa história
Apenas reviso e reconto
Cada imagem, cada paisagem

E assim os dias passam
Entre vielas e paragens
Assim torno o futuro incerto
Como certo deve ser esse destino

22.7.17

Porvir


Bebê 
Quase sete anos se passaram
Agora já sei qual pé chutas a bola

Admiro a espontaneidade do teu sorriso
E a fortaleza do teu caráter

Sei que ninguém te dará ordens aleatórias
Baterás o pé até conquistar o bom direito

Sei que posso contar contigo
Na luta contra o prefeito
Levantando faixas pela nomeação
No grito de ordem:
Fora Presidente

Já tens o hábito de  ocupar as ruas
Lutar por nossos direitos
Sabes que o presidente é um homem mau
Cercado de corruptos

Tuas perguntas políticas
Teu interesse pelos ocorridos
Revelam a dureza do cotidiano

Até a pelegagem do sindicato foi descortinada
Até o emprego que papai perdeu foi desvelado
Até a justiça desafinada foi revelada

Teu engajamento é inspiração
Nessa selva digital
Neste país que ainda está por vir

14.7.17

Sol


O sol nunca se vai
O sol nunca se esvai

O que há por trás do lado obscuro do Sol?

O que há por trás de nossas vidas obscuras?

O sol nunca se vai
E nossa vida passageira acasala
Tantos preconceitos
Tantos desabonos
Tantos mistérios na antesala

Eu trabalhador de sol a sol
Nunca vejo o poente
Sou um zero à direita
Nessa politica de tantos expoentes

O sol nunca se esvai
Nem a margem à esquerda
Enquanto houver sol...

Contradição

Renasço a cada dia
Apesar do ser morrinhento que mora dentro de mim

10.7.17

Revolto



Eu revolto
É proibido proibir
Domino as ondas
Num efeito dominó

Eu revolto
Subverto ordens
Encaro o mar como uma criança
Engulo o medo
Sou todo coragem

Eu revolto
Sou mais violento que a ressaca
Sou amargo, salgado
Com o desejo patente de revoltar

Mar revolto
Encaro de frente
Pois a revolta é meu caminho só de ida
Não tenho tempo para voltar

9.7.17

Solidão



A solidão é um pontinho branco
De costas para o mar

Domingo



Domingo é dia de futebol
Jogo pela manhã
A tarde, assistir pela tevê

E não me venha com o discurso
Do seu ministro da economia
Que eu não quero nem ver

Navegantes


Aviso aos navegantes

O mar não está para propina
Ventos fortes
Águas turvas
Delações premiadas
Aves de rapina

Aviso aos navegantes

Descobrimos suas falcatruas
Filmamos malas, acordos espúrios
Dinheiro contado
E vamos tomar as ruas


Aviso aos navegantes

Alerta de céu enegrecido
Ressaca da maré
Navios e rádios piratas
Rompem as amarras e bradam:
Todo poder a ralé

8.7.17

reserva

Um exército bate à porta
Um exército implacável que causa temor
Milhões de compatriotas alistados
involuntariamente

Medo Fome Desemprego

O exército de reserva avança
É um fantasma na cabeça do trabalhador
É o argumento do patrão usurpador

É o chicote
o limbo
a humilhação

É o poder da contrarreforma
É o avesso da liberdade
É a pura promiscuidade

É um exército surdo mudo inodoro
É o exército do fim do mundo

3.7.17

A vida que tremia

Hoje pensei em Hermes
Um amigo esquálido da época de infância
Ele morava em frente a uma fábrica de tecidos

O chão tremia vinte e quatro horas

Vinte e quatro horas
Vinte e quatro horas
Vinte e quatro horas
O chão tremia
Por todo o dia
Máquinas a todo vapor

Por Deus
Aquele chão tremia as casas
Tremia Hermes e sua família
Hermes tremia
Vinte e quatro horas por dia

Sístole e diástole estavam na frequência
da tecelagem
Não havia tempo para amores
Corações tremiam
A casa quase caía, diziam os rumores

A casa de Hermes tremia
tremia o pai
tremia a mãe
tremia a tia
tremia os ossos do magrelinho
tremia o corpo famélico
tremia até o cachorro que não mais latia

Como Hermes dormia?
Dentro de uma casa que tremia
Como Hermes comia?
Dentro de uma casa que não parecia
Como Hermes aprovaria?
Dentro de uma casa onde os estudos não cabiam

Não tenho mais notícia de Hermes
Nem da casa que tremia
Nem da família que tremia
Nem do bairro que tremia

Só espero continuar a tremer de indignação
Em nome daquela barriga vazia
que tanto tremia

12.6.17

Mesclado

Como barriga seca não dá sono
Lembrei do sabor do iogurte
Do sorvete mesclado

Pensei nos alunos da escola pública
Café preto e pão seco
Qual o sabor do iogurte para o cego paladar?

Como será imaginar o sabor de morango
Mesclado com iogurte batido?

Qual o sabor do vazio?
Café preto e pão seco
Que sabor tem?

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Preto, pobre, seco

Qual o sabor da desigualdade?

Pobre café preto seco
Rico morango batido
Sabor: desigualdade mesclada

5.6.17

Confabular (ou um manifesto Parahyba)

Em tempos em que revoluções
Se transformam em festas corriqueiras
Nossa busca pela formação
Em terra de mar de beiras
São armas de luta

Só nos resta confabular
Ir além mar
Conquistar os mundos
Pedir a cabeça de tantos imundos

Vamos confabular em todos os tempos
E espaços
Não vamos deixar nosso Centro morrer
Pois seremos o centro do nosso universo
Sem medo das balas nos nossos peitos de aço

Eu tu ele
Nós vós eles
Vamos confabular
Derrubar o ressurgimento do abacateiro
Não acataremos outros atos

Eu tu ele
Nós vós eles
Vamos confabular
Junho é uma criança
Que vai derrubar reis

4.5.17

Babel


Minha cidade é uma Babel
Políticos e cidadãos não se entendem
Escrevem leis que só ficam no papel

Minha cidade é uma Babel
Professores e alunos não se entendem
Parecem crianças no carrossel

Minha cidade é feita de Torres
Toletes empilhados como códigos
Em todo canto fedentina e odores

Cães, gatos, cavalos
Deixam suas marcas e seus sinais
Falam a mesma língua silenciosa

Cães, gatos, cavalos
Riscam o chão, em sinal de rebeldia
E enquanto homens, mulheres, crianças
Não se entendem
Esses seres inanimados constroem suas torres todos os dias

20.4.17

Vasto Mundo

Meu pai com Alzheimer
No alento da sua lucidez
Ao ver as cenas bélicas na TV:

Meu filho, ao longo dos meus 78 anos
Não houve um dia em que o mundo
não estivesse em guerra

Que o digam pai
As crianças em carne viva
Bombardeadas
Queimadas com armas químicas
O menino refugiado afogado
As cenas tristes em preto e branco
A Rosa de Hiroshima

O mundo esquálido
Sem rima
O mundo beligerante de Bush Bush Bush
E seus fanáticos sucessores
Bombas incendiando caveiras
Bush Bush Bush
Bombas promovendo coveiros
Bush Bush Bush
Não há saídas de emergência
Apenas bombas
Bush Bush Bush Bush

Entre os escombros
À direita
Urnas conservadoras
Explicações rarefeitas
Silogismos carentes de causa-efeito

Nas cabeças ocas
Pululam soluções rápidas
Bush Bush Bush
E assim se esvai a humanidade...

5.4.17

Vida Líquida

Para Baumann

A informação está muito diluída
(intervalos são mais ricos que o noticiário)

O leite está muito diluído
(coloquem água, já diziam os milicos de outrora)

A vida está muito diluída
Escorre fluída
facilmente pelo ralo

30.1.17

Tropicana

Hotel Tropicana

Aqui almocei com meus avós, pais, irmã, tios e primos na década de 1980.

Por ironia do destino, 30 anos depois, adentrei no antigo hotel Tropicana já como Ocupação do Tijolonho Vermelho.

 Convivi com algumas famílias, brinquei com as crianças, formamos até uma turma de alfabetização de Jovens e Adultos.

Vi cenas impactantes na época das chuvas. O cheiro da falta de condições sanitárias vai ficar comigo para o resto da vida. Assim como a luta de um povo por direitos básicos.

 O Tijolinho Vermelho foi a maior lição que já tive na vida, a maior escola e o maior aprendizado.

Nunca vou esquecer das crianças brincando com meu filho, do cuidado e do carinho que alguns tinham com o "galeguinho".

Espero que meu filho também nunca esqueça essa experiência de vida e nunca naturalize tamanho descaso com o povo.

Tijolinho Vermelho / Hotel Tropicana

Nesta cadeira aparentemente vazia
Muitas pessoas escreveram sua história
Elas nunca esperaram um milagre

Cansadas de ficar sentadas
Foram à luta
Sofreram com as chuvas
Sofreram sem uma ducha quente
Sem condições sanitárias

Esta cadeira vazia
Conta muitas histórias
De muitos meninos
e meninas
Que brincavam no Ponto Cem Réis
No Pavilhão do Chá
Na Praça dos Três Poderes

Podres Poderes
Que não querem dar dignidade às pessoas
famintas

Poderes de vestes sujas
Que nunca precisaram jogar suas fezes
Do alto do Hotel Tropicana
Pela simples falta de um vaso sanitário

Podres Poderes
Jogam suas excrementos na cara do povo

Para além da soberba do Tribunal de Justiça
Do Palácio do Governo
Ou da Assembleia Legislativa
Homens e mulheres teimam em escrever sua história

Nesta cadeira sentaram iletrados
Mais dignos do que àqueles sentados nas cadeiras imundas da Praça dos Três Poderes

22.1.17

Patético

Uso desculpas esfarrapadas
O tempo todo
Nos meus deslizes
Nos meus equívocos

Até nos sonhos que invoco

As desculpas e meus farrapos
São traços
São desvios de conduta

São fugas
Para tentar apagar as minhas rugas

São meus escritos sem métrica
São frases sem pé nem cabeça
São desvios éticos

Uso desculpas esfarrapadas por tudo
Até por motivos patéticos

16.1.17

Insônia literária


Meia noite. É preciso escrever.
Mudo o horário. Mudo o computador. Mudo a posição.
O texto continua mudo.

Lá fora cobradores rangem os dentes. São prazos implacáveis alvoroçando minha falta de inspiração.

Minha mãe inicia a sinfonia dos pires e talheres às cinco da manhã. Anuncia o café forte e o alarido diuturno.
São vozes que cercam e agonizam o teclado até o por do dia.


Procuro refúgios, Thomas Mann,
qualquer mágica que digite freneticamente todo o texto que está contido na cabeça.

São apenas velhos truques e desejos frenéticos. Parar tudo e ler um romance. Ou uma tragédia grega.

Outrora marco um mergulho no mar. Catatonia vespertina. Delírios corriqueiros na Praia de Coqueirinho.

Os trinta dias correram pelo ralo. A ampulheta do tempo está cheia de ar...

Na linha de chegada estão todos. Maridos, mulheres, filhos, minha mãe com o pires na mão, meu pai na torcida por qualquer resultado, o futuro e o carnaval. O verdugo de minha sorte sorri para mim.

Meio dia. O texto ainda me espera neste quarto quente e repleto de passado. Parece que todos me olham, esperam por mim. Os doutores, os sobrinhos, desconhecidos de Shanghai, quase toda a família. O mundo inteiro está aqui à espera das duzentas páginas inexistentes e retorquidas.

O texto sabe imolar o sujeito. Sacrifica inocentes. Refluxos e mais refluxos, arrependimentos, lembranças das rotas alteradas, caminhos de fuga.

O texto não espera poemas, não coaduna com correntes literárias, não aceita jocosidades.
Ao contrário, é burocrático, infame, prolixo.


Assassino de poetas primários lacônicos, o texto há de cumprir o seu ideal.

2.1.17

2017

Em ano ímpar
pares tudo

Gula

(para o poeta sujo)

Em casa de Ferreira
Espeto de poema

4.12.16

Seca

Oremos
Pela indústria da seca
em pleno século XXI

Pelo céu escarlate
Pela cachorra Baleia
que não chora nem late

Oremos
Como os gravetos secos
de olhos fundos
e chão ardente

Brindemos
com panos quentes
pela falta de tudo
com aguardente

Oremos
Por uma saída
Pela chuva rala
Pela intervenção divina

Oremos
Para que todos aqueles indignados
Com a seca alheia
Desçam de seus palanques
E venham sentir esse calor na veia

30.10.16

Provocações



Para Juljan Palmeira

À sombra de uma palmeira
Não descansam mentes perigosas
Subversivos sonhos
Microfones voadores
amplificando quimeras laboriosas

Metralhadoras poéticas
Agitam sábados subversivos
Encontro marcado
com Cabras Marcados para viver

Microfones vão voar
Disparos cíclicos
Serão nosso dia D
Serão cabeças no tempo
Subvertendo os segundos
Amplificando a autonomia intelectual

Não queremos respostas,
apenas provocações para fumar
Numa noite quente de luar...


14.10.16

My little Blue Girl

Enquanto escuto a Janis
Lembro do tempo que vivia nas nuvens
Lembro do Vietnã
E dos irmãos que lá ficaram

Lembro das metanarrativas
Tempo que sabíamos quem seguir
Lembro dos cigarros que nunca fumei
Dos canais de TV que não existiam
E de alguns amigos de infância
Que até então não eram fascistas

Lembro dos domingos de praia com meus pais
Ou das tardes de cachorro quente
Numa lanchonete de esquina em Jaguaribe

Ao ouvir a Janis
Lembro como ela era feliz
Como ela era livre
feito aquelas tardes de domingo

Ouço a Janis para me libertar
Tal qual nos tempos em que não fumei
Tal qual nos tempos que eu só precisava de um telefone de linha
E uma menina magricela para ouvir por horas

Ouço a Janis para lembrar o quanto era bom
estar apaixonado por meia dúzia de amigos aventureiros

Ouço a Janis para celebrar o tempo
O tempo que desejei ser hippie
Andar estrada afora sem a menor intenção de um dia voltar para os cachorros quentes de domingo

E quando a música da Janis terminar
Estarei de volta ao tempo da subjetividade
Às músicas de baixo calão
E a falta constante de créditos para poder ligar para aquela amiga magrela

Germe

Existe um germe dentro de mim
Existe um germe em plena lua cheia
Cheio de luas para orbitar

Este germe geme
Come ovo com clara e gema
Esse germe é meu tema
cotidiano

Todos os dias do ano

Este germe sou eu
É meu germe autofágico
É meu destino trágico

Este germe é o meu arrependimento
Guardado durante tempos
No meu apartamento
Em caixas verdes de departamento

Este germe é como um bicho geográfico
Que me atravessa de norte a sul
Comendo minha carne

De um cheiro atávico
Este germe me faz lembrar tão bem
Dos bons tempos de infância
Da luta de meu avô por um ramo de trem

Este germe sou eu
Ele repete
Como uma cantilena
Doce e fria

Este germe geme treme
Escreve em letras garrafais
Como se fosse tatuagem
Como se fosse o próprio Caifás

Este germe é minha coceira intermitente
Faz de tudo para estar presente
Por mais eu que tente e tente e tente e tente

Por mais que eu morda
por mais que eu mostre meus dentes
Este germe implantando
Será lavoura e colheita
Neste meu deserto tão árido

Um dia este germe
Descansará em paz
Numa saída sem muito alarido
Não terá mais quem sugar
Nem feriados chuvosos para comemorar
Nem tão pouco lágrimas para enxugar

25.9.16

Poema morto

Escrever (tentativas) poéticas
É como mergulhar num pântano
artificial

Não corto os pulsos como o Veríssimo
Mas desejo, caro leitor
que você imagine que o autor morreu

Atolou-se nesse lodo poético movediço
Morreu sem ar
sem luz
sem isso

Morto, caro leitor
Não posso responder sobre o que escrevi
sobre quem escrevi
ou como estou me sentindo

Morri com o poema
Morri com as tentativas
Agora ele fede
Está em decomposição

Cabe a você, caro leitor
usar a imaginação
E quem sabe mantê-lo dessepulto

Ensaio sobre minha cegueira

Precisei ensaiar minha cegueira
Para poder enxergar melhor

Precisei ensaiar minha cegueira
Para poder cantar a vida melhor

Precisei ficar cego
Para compreender a cegueira do outro

Precisei estar cego
Para ver minha própria cegueira

Minha cegueira é minha condição de visão
É quase gagueira
No parlamento imundo

Minha cegueira é minha condição de estar no mundo
É poder enxergar os limites do outro

Estou cego
nada sinto
E ao mesmo tempo compreendo a visão
E sei porque minto

Estou cego e corro
E todos que enxergam
param
Doentes de poliomielite

Estou cego
E tantos que enxergam
Vêem só o pensamento da elite

Minha cegueira é como um parto
Ante o aborto das minhas convicções
soterradas num pacto

Estou
cego
surdo
mundo

E a toda hora mudo o canal
para nada ver além do ego

23.9.16

Etc

Não preciso mais ouvir músicas deprimentes
Para escrever meu poemas e sentir as vilanias
Basta ligar a TV e ver os políticos que mentem
Basta ir à feira ver os preços e orar para que não aumentem

Não preciso querer compor
deprimente
Já basta o canal que não abre a mente
Já basta a geladeira vazia
comumente
Já basta ler o jornal e ver
como mente

Já não preciso forçar a barra da dor deprimente
Basta ver o consumo rasteiro das ideias
intermitentes
Basta ver a briga interna
dos meus entes

Já não preciso saber quem sou
ou quantos dentes
Parecem visões prementes

Visões emparelhadas de um futuro pouco decente

et ceteramente

15.9.16

eu, vezes nada

Eu, trambolho de gente
Deixo essa última carta
Escrita com o dente
trincado de ódio

Eu, trambolho de gente
Filho do Augusto e do amoníaco
Sinto cheiro de enxofre
Nas cadeiras de chefes demoníacos

Eu, trambolho de gente
Cego de um olho
Míope de outro
Só enxergo meias verdades

Eu, trambolho de gente
Sou maltrapilho
Indecente
Visconde feito de milho

Eu, trambolho de gente
Sou uma rima no deserto
Uma lágrima no oceano
Ninguém de fato, decerto

Eu, trambolho
Às vezes gente
Às vezes ato
Às vezes nada
vezes nada

29.8.16

Heroína

Heroína

(para Janis)

Nunca usei heroína
Nunca quis ser herói
Ou cowboy
Neste filme sem mocinho
que a vida predestina

Paguei a conta com o preço alto da coerência
Em meio a tanta displicência
Daqueles que um dia juraram lealdade

Os meninos da rua continuam com baleadeiras
Mesmo que já não tenham mais idade
para tanto

Subi e desci ladeiras
Às vezes sóbrio
Às vezes reu
Nunca montado em pedestal de ouro
Sem pés alados a caminho do céu

Nunca usei heroína
Nunca corri o risco de não amanhecer
Aos vinte e sete
Num quarto triste de hotel

Nunca gritei para me mostrar
Ou desafinar
Meu grito era em dó maior
Era o grito do meu tempo
Para sustar os agentes laranjas
Colhidos nos pés podres de barro

Vai Janis
Atira para todos os lados

Tua voz e teus gritos
São balas de anis
Só perfuram carnes amargas
cheias de ardis

25.8.16

Canibais

Estou embrutecendo
Uma colônia se espalha ao meu lado
Vermes crescendo
Sem parar

Poemas não brotam mais
Nesse desaguadouro
De canibais

Sujeitos comem minha carne
Repelem meus livros
Queimam meu corpo que arde

Estou embrutecendo
Estou emudecendo
Estou descendo
ladeira abaixo

Sinais dos tempos
De silêncio e tecnologia
Sinais dos tempos
Ventos conservadores
Não alimentam a autofagia

Guitarras não reagem mais
Crianças não reagem mais
Meus sonhos não suspiram mais

E (quase) todos escondidos com medo
dos canibais

1.8.16

Aqui jaz

Já imaginei minhas cinzas jogadas ao mar
Nesse mar revolto
Nessa química perfeita
De ondas coloridas e paisagens resolutas

Já imaginei essa louca amálgama
De cinzas e sonhos
De derradeiros desejos

Essa enseada
O platô que anuncia a vida
O verde misturado ao azul
As rochas valentes

As ondas quebrando
O som da ressaca estridente

Não esqueçam
Exatamente neste ponto
Onde anunciam a jurema
Deixem minhas cinzas
(eu preferia a carne viva)
Alimentar essa última aventura extrema

23.7.16

Tudo

Eu já tentei de tudo

Tentei fazer omelete sem quebrar os ovos
Tentei construir parede sem tinta vermelha
Descansei no sétimo dia
Na sombra de uma rede

Enfrentei os sete mares
Descrevi vidas em xilogravura
E acabei fixo, numa moldura

Já tentei de tudo
Fiz da vida uma cozinha de forno a fogão
Fiz poupança, espada, lança e redenção

Eu pensei que éramos muitos
Nessa síndrome tecnológica da austeridade

Terminamos sós
Nus
Abatidos na tenra idade

19.7.16

(quase) todos os olhos

Para tom, Zé!


violência

Corro da violência
Das vicissitudes
Do sangue que corre em minhas veias

Corro da violência
Da falta de atitude
Das estatísticas
em larga escala

Larga minha mão
Beija minha boca
Sangra meu beiço robusto

Larga meu peito
Esfola meu busto
Me diz quanto vale
O custo
(Brasil)

Chega de violência
Chega mais violência
Chega de violetas
E roletas russas

Eu sou minha própria violência
Estilhaço pedaços de mim
Me engulo
Sou o verme do meu próprio cadáver

Lesto e seguro
Digo adeus na hora da chegada
E abro mão do meu sangue puro

16.7.16

Os dez últimos dias

Os dez últimos dias
E o som não mais principia
Sem tese, antítese ou síntese

Não há cura
Para uma doença de dez dias

Não há cura
Para longas passionais

Não há cura
Para lutas inglórias

Não há cura
Para vizinhos inescrupulosos

Não há cura
Para orquestras desafinadas

Não há cura
Para trabalhos vazios

Não há cura
Quando se quer apenas dez últimos dias

Não há cura

Não acuda

Não acura

Não cura

Não...

6.5.16

Oração

Desejo que você não se vá
Depois de um dia obscuro
Depois de ter que pular tanto muro
Desejo que você não se vá 

Depois de esbarrar com tantos empertigados
Depois de assistir tanta tevê vazia
De ter que conviver com essa azia
Por favor, não se vá 

Depois de olhar para o meu umbigo
E ver um sujeito ignóbil
E saber que é tão óbvio
Que sou tão egoísta quanto essa res publica

Você me responde com um tapa de luvas
Com uma clave de sol resplandecente
- Durma com a escuridão e com a sua visão turva

29.4.16

Contingência

Sou do tipo revolucionário
Que deserta da guerrilha rural
No primeiro sinal
De um amor beligerante
Que se encanta com os acordes doces

E não chego a endurecer
Só em pensar em perder a ternura
Num bravo amanhecer

Por esse motivo
Não me alistei
Preferi a reserva de contingência
Por um desejo furtivo

Preferi ficar quieto
Escutar tuas músicas
Teus acordes
E dormir apaixonado
Eternamente,
no teu colo esplêndido

28.4.16

Nau

Se um mar revolto Agita teu coração Atormenta rotas e a navegação Toma uma dose de uma voz doce
Que intensiona, simplesmente, aplacar a falta que faz você 

Conto as horas para chegar num porto seguro Conto as horas para ouvir, de longe, sinalizadores afinando o tom Que me torna mais maduro

É mais que preciso, esse doce canto Quase pueril, cheirando a tenra idade Em qualquer canto  
Te escuto e esqueço a maturidade
Lágrimas rolam, descem embarcações Tecem desejos, emoções Traçam caminhos ao longo dos embarques Dessa viagem melódica repleta de talvez

Como eu queria Embrulhar tua voz em papel de jornal Carregar comigo em cada partida Tuas músicas, tipografadas Como uma tatuagem Em todas as viagens na minha nau