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26.10.14

Domingo

Um leito viscoso corre sobre minha sombra denegrida. Encobre paisagens e desfruta do horror matinal.

Amanhã é domingo e este pasto seco deixado pelas larvas amorfas demorará a se reconstituir. Não há bom sujeito que dure sem ser tomado pelo ódio tenobroso desse rio imundo que deságua em mares infindos.

Os jornais e revistas desencontrados em bancas, antes explodidas pelos verdugos da morte, dilaceram a opinião coletiva. Não escuto ressoar o canto lírico do bem-te-vi, quedou mudo no pasto seco.

Meus olhos ardem, o horizonte ficou mais distante. Ainda não sei como irei transpor esse domingo pedregoso, mas há uma certeza dizendo que é preciso [...].

Mas não adianta. Carreatas, comícios e discursos, com volume acima da média, ensurdeceram a plateia. É preciso esperar a segunda-feira raiar.      

24.10.14

Guarida

E se eu for dar guarida a todos esses sentimentos que rasgam minha veste, seguirei nu, visivelmente tonto, esquálido e sem bússola. E se todas as propagandas fossem a pura verdade, se todas as eleições respeitassem a moral e se essa luta do bem contra o mal fosse a última fronteira norte-sul, eu estaria exilado do outro lado, bem distante desse maniqueísmo artificial, plantado justamente para crescer como folhas hidropônicas distantes da terra e sem o sabor gostoso daquele que veio da amálgama do húmus com a indignação verdejante.

22.10.14

Inerme

O sol esta manhã iluminou mais uma encruzilhada histórica
Releio notícias velhas tão novas que causam espanto
Inerme procuro nos autos mais e mais argumentos

Gente séria [e não tão séria] define o tom do debate
As ruas vazias estão cheias de santinhos que voam sem compromisso
As ruas vazias calam frente ao berro das urnas

Mais uma vez o santo demônio desintegra quem não crê no céu e no inferno
Milhões sangram e não são considerados válidos
Milhões estão em abstinência, são brancos, negros insatisfeitos, nulos pelo sistema

A ordem mundial segue [quase] incólume
Os bombardeios prosseguem, os trabalhadores explorados continuam cabisbaixos, a missa é pontual como sempre

O céu e o inferno definem como devemos agir
O outubro vermelho desbota-se num botão verde [encarnado de verdade]
Poemas sujos estão tão limpos que dão nojo

Jovens desconhecem os broches com a imagem de Vladimir
Tecem longos comentários
Afirmam ter tv, casa própria, iogurte
Chamam qualquer teoria de ortodoxa
E continuam gerando mais-valor de 8h às 18h

Chamam de sem fronteiras o ideário ianque
Os universitários sentados em privadas, reafirmam o pensamento dominante
As alianças espúrias, os velhos lobos no poder
Ladainhas do dia-a-dia

Mas amanhã vou para a rua, varrer santinhos do pau oco
Ovacionar a classe [deliberadamente] adormecida, combater a tragédia desse vazio eleitoral

Mesmo que o sol se ponha silencioso e recomece a cantilena noutro dia

15.10.14

Ímpeto

Portas entreabertas, bocas fechadas
Frestas de passagem, faces ocultas
E os desejos cálidos como um pôr do sol
Nublados por um dia eterno de chuva torrente

E este dilúvio arrasta tudo que está pela frente
Troncos, correntes, vontades, matilha
[coletivos]

Ficam entulhos, individualidades, fedor
Pensamentos obtusos e robustos
Ímpetos desajeitados, direita, ruas sem saída

E um maniqueísmo inveterado
Assiste o féretro passar
Dos sonhos que serão maculados
[e jogados em covas abertas]

13.10.14

Dobradiças

E o meu silêncio virou noite
Silêncio de uma casa inteira
Silêncio que fala mais que uma novela

Silêncio dos túmulos
Na calada da noite fria
Silêncio de uma sinfonia inacabada

De repente um ruído
Um prurido
Um tiro no escuro
Centenas de vezes gritei
Um grito mudo
Acuado, diuturno

Centenas de vezes decorei a fala
Do monólogo apresentado a mim mesmo
Num silêncio sepulcral

Centenas de vezes desconfiei
Que aquele silêncio era um eco
O ressoar de palavras [mudas]
A partida
O tilintar de algum recado
Que lavrei em papel alheio

Apupos secos, silenciosos
Proclamam, pelo menos hoje,
que parti

Parti em silêncio, sem abrir nem fechar portas
Para evitar o ranger e o gemido das dobradiças

[ ]

Depois de uma multidão
Preciso mesmo é do quarto vazio
Do silêncio dos meus pensamentos
Sem a interferência da antena de TV

Chama silêncio que não arde
[cala] balde d'água
Entope o barulho ensurdecedor
Das mazelas diárias

[silêncio]
[silênci]
[silênc]
[silên]
[silê]
[sil^]
[sil]
[si]
[s]
[]
.